sexta-feira, dezembro 12
O Véu, o Kippah e a Cruz
Já muito se escreveu em torno do debate teórico da laicidade ligada à questão do véu islâmico em França. Ontem Pacheco Pereira, no seu Abrupto dava voz a vários leitores com interessantes perspectivas sobre o tema. Mas uma coisa é a discussão académica acerca do “equilíbrio entre Liberdade e a Igualdade", como ali escrevia Ricardo Peres, num comentário bastante interessante. Outra são as reais implicações que advém da proibição exercida com força de lei – uma atitude “autoritária e tipicamente jacobina”, como escreveu Pacheco Pereira alguns dias atrás no Abrupto, uma leitura com a qual concordo (ver também uma excelente análise de Luís Carmelo no Miniscente).
Agora, o relatório da comissão Stasi vem propor a interdição por via legislativa, total e compulsiva, do uso de “símbolos religiosos ostensivos” nas escolas francesas. Véus islâmicos, kippot judaicos e “crucifixos de grandes dimensões” são banidos em nome da “integração”.
Como ponto de partida argumentativo, não faz o mínimo sentido comparar a cruz usada num fio de ouro ou prata com um véu islâmico (hidjab) ou com o kippah judaico. Ao contrário do crucifixo, usado pelos cristãos meramente como adorno, a hidjab e o kippah são obrigações religiosas para muçulmanas e judeus. Tal como o é, por exemplo, o turbante sikh – sim, bem sei que as motivações aqui são outras e os sikh, coitados, até nem são fundamentalistas... mas usar fundamentalismos e integrismos islâmicos como argumentos justificativos para esta proibição é passar verdadeiramente ao lado da questão central criada com esta medida: uma maior insularização (agora forçada) de comunidades já de si marginalizadas.
“É essencial integrar os emigrantes, instilando-lhes os valores da sociedade francesa”, disse o ministro dos Assuntos Sociais francês, François Fillon, justificando o seu apoio às conclusões do relatório.
Na prática, o raciocínio de Fillon não anda muito longe – pelo menos em espírito – das políticas de integração desenvolvidas pelo governo australiano em relação aos aborígenes nas décadas de 40 e 50, ou da assimilação forçada por que passavam os nativos americanos e os emigrantes no final do século XIX nos EUA. Era nesse mesmo contexto que a World's Columbian Exposition, realizada em Chicago em 1893, se proclamava como “the first expression of American thought as unity", simbolizando a unificação e uniformização da cultura americana.
Salvaguardadas as distâncias, a conclusão contida no relatório Stasi, obrigando à secularização sob pena de expulsão, é equiparável às medidas inquisitoriais por que foram obrigados a passar os judeus portugueses e espanhóis no século XV. «La question n'est plus la liberté de conscience mais l'ordre public», assenta o relatório francês, uma frase justificativa que podia ser recuada cinco séculos mantendo todo o seu contexto.
Ao contrário do que diz o ministro Fillon, estas proibições não contribuem para qualquer tipo de integração. Forçados a escolher entre a escola secular e a religião, a escolha para aqueles que o relatório visa será sempre óbvia: a religião.
Para compreender isto é necessário perceber o que estes “símbolos religiosos” representam para aqueles que os usam. E aqui vou resumir-me apenas ao que conheço de causa própria, o judaísmo.
Para um rapaz judeu oriundo de uma família ortodoxa “praticante” – e ortodoxos são a esmagadora maioria dos judeus que vivem fora dos Estados Unidos, incluindo os portugueses – usar o kippah é uma obrigação. É um mandamento. Do ponto de vista bíblico, apenas aos sacerdotes do Templo (Kohanim) era requerido que cobrissem a cabeça. Mas o uso de kippot tornou um costume obrigatório que os homens judeus cumprem há quase 2 mil anos. A própria Halakhah (a Lei Judaica) diz: “é proibido andar quatro cúbitos sem cobrir a cabeça.”
No chamado mundo ocidental é costume descobrir a cabeça em sinal de respeito. No judaísmo, cobrir a cabeça é um sinal de respeito. O Talmude sustenta que o propósito do uso de kippot é funcionar como uma recordação constante que Deus está “sobre nós” (Tratado Kiddushin 31a). Acções externas criam consciência interna e o uso de algo simbólico e tangível “sobre nós” reflecte nos homens judeus o sentimento interior de respeito por Deus.
À parte de toda a discussão do estatuto da mulher no Islão (que considero igualmente fundamental, mas que, a meu ver, não cabe neste contexto), é também desta forma que a hidjab deve ser enquadrada, pelo menos enquanto prática religiosa islâmica.
Percebendo isto mesmo, ainda antes de se saber que a comissão Stasi iria propor igualmente a interdição do uso do kippah, o rabino chefe de Paris, rav Joseph Sitruk juntara já a sua voz ao coro daqueles que protestavam contra qualquer disposição legal que proibisse a hidjab islâmica.
Se Jacques Chirac aceitar agora os conselhos da comissão Stasi, o resultado prático destas proibições será um resurgimento acentuado de escolas privadas, islâmicas e judaicas, onde as crianças agora visadas crescerão de forma totalmente isolada e exponencialmente insular. Esta tendência começou já a dar sinais em França, com o aparecimento recente da primeira escola secundária islâmica, em Lille.
O problema maior reside aqui no facto da comissão Stasi ter decidido com base no preconceito. Em sociologia chama-se a isto “orientalismo manifesto”, uma visão neocolonialista do “outro”, transplantada agora para as entranhas da “Metrópole” (ver Edward Said's Orientalism: a Brief Definition).
Acerca disto o recém falecido Edward Said escreveu:
"For every Orientalist, quite literally, there is a support system of staggering power, considering the ephemerality of the myths that Orientalism propagates. The system now culminates into the very institutions of the state. One would find this kind of procedure less objectionable as political propaganda – which is what it is, of course – were it not accompanied by sermons on the objectivity, the fairness, the impartiality of a real historian, the implication always being that Muslims and Arabs cannot be objective but that Orientalists. . .writing about Muslims are, by definition, by training, by the mere fact of their Westernness. This is the culmination of Orientalism as a dogma that not only degrades its subject matter but also blinds its practitioners."
O grande desafio das sociedades modernas reside na capacidade de sobreviver nos moldes da diversidade, e na definição da palavra tolerância não cabe esta interdição.