<$BlogRSDUrl$>

terça-feira, janeiro 20

Contribuições para a História Judaica de Portugal IV

O Judeu nos Painéis de São Vicente


Paineis de São Vicente, atribuídos a Nuno Gonçalves

Escondido no último retábulo da mais conhecida obra da pintura portuguesa quinhentista, Os Painéis de São Vicente, atribuída ao pintor Nuno Gonçalves, encontra-se uma figura que tem despertado a curiosidade dos historiadores.Painel da Relíquia ou Alegoria do Comando Virtuoso, um dos poucos registos iconográficos de judeus portugueses quinhentistas que ainda restam.
No Painel da Relíquia, também conhecido como “Alegoria do Comando Virtuoso”, envergando um manto negro e um barrete, um homem robusto segura nas mãos um livro com caracteres indecifráveis. Uma análise detalhada do retábulo não deixa dúvidas: a misteriosa figura é uma das poucas representações iconográficas que restam de um judeu português quinhentista.
Além do livro com caracteres que imitam o hebraico, a figura ostenta no peito uma estranha insígnia de seis pontas, interpretada por alguns como uma representação oculta remanescente da estrela de David. No entanto, a insígnia não é mais do que o sinal que os judeus portugueses eram obrigados a usar nas suas roupas, decretado no texto das Ordenações Afonsinas – livro II, título 86 –, onde a lei Joanina de 1429 prescreve a utilização obrigatória de “sinais vermelhos de seis pernas cada um, no peito, acima da boca do estômago, (...) pois os judeus não traziam quais sinais que deviam trazer e esses que traziam eram tão pequenos que não se pareciam, e outros os traziam de duas e três pernas e mais não."
Mas a chave central para decifrar o judaísmo desta figura integrada numa das maiores obras primas da pintura europeia quinhentista, acima de tudo, é o livro que tem nas mãos. Acerca da representação do livro, e mais especificamente da forma como ele é manuseado, António Salvador Marques, no seu Painéis de S. Vicente de Fora - Modo de Utilização, escreve que a intenção do pintor em transmitir o judaísmo do personagem foi mais do que premeditada:


Livro em “hebraico” ilegível (clicar para uma versão ampliada da imagem)

O livro encontra-se nas mãos de uma figura com aspecto severo, marcada por um sinal vermelho de seis pontas na indumentária, cujo gesto denuncia a intenção de mostrar que as páginas se voltam da esquerda para a direita, isto é, no sentido contrário ao habitual. Se o leitor reproduzir o gesto defronte de um espelho, aperceber-se-á da forma como o posicionamento dos dedos no acto de passagem da página é significativo de uma tal intenção, muito mais que da exibição de algum trecho específico de livro conhecido.

Os livros hebraicos são abertos da esquerda para a direita e lidos em ordem inversa. Ainda na opinião de António Salvador Marques, o facto da escrita reproduzida pelo pintor ser constituída por caracteres “fantasiosos e ilegíveis” pode também ser demonstrativo:
A conotação judaica não é dada só pela forma como as páginas são voltadas, mas também pelo aparecimento de caracteres ilegíveis que poderiam sugerir a escrita hebraica aos olhos dos não conhecedores, como se interessasse apenas a compreensão de que se trata de um livro hebraico, e não a leitura de um qualquer trecho bem determinado mas irrelevante para os fins em vista. A figuração de comentários ao longo das margens parece sugerir a prática talmúdica de interpretação e comentário da escritura, e reforça ainda mais a conotação judaica. A presença expressa de numerosas anotações marginais num livro ilegível não parece fazer sentido em qualquer outro contexto.

Última parte do tríptico temporal, na “Alegoria do Comando Virtuoso" o judeu português quinhentista representa a virtude do rigor, ladeado pela penitência e pelo sacrifício.
Antes do restauro dos painéis, Joaquim de Vasconcellos, n’O Comércio do Porto de 28 de Julho de 1895, percebeu essa parte da alegoria, transmitindo-a numa prosa encharcada de preconceitos antisemitas: “aponta com gesto arrogante, todo ele vaidoso, enfatuado na sua sabedoria de rabino, para um livro de confusos caracteres fantasiados. É bem o tipo da sinagoga militante (...) por detrás do rabino dois clérigos de alva, esculturais, profundamente característicos, postos de sentinela ao bilioso sectário.” (via “Painéis de S. Vicente de Fora - Modo de Utilização”).
Os historiadores brasileiros Guilherme Faiguenboim, Paulo Valadares e Anna Rosa Campagnano, no recém editado “Dicionário Sefaradi de Sobrenomes” (Frahia, São Paulo 2003), vão mais longe e afirmam que este judeu nos painéis de Nuno Gonçalves pode muito bem ser D. Isaac Abravanel, um dos mais ilustres judeus portugueses do século XV – estadista, líder da comunidade judaica ibérica, filósofo e rabino cabalista nascido em Lisboa, cujos escritos são ainda hoje estudados – especialmente a sua interpretação do código de ética Pirkei Avot (A Ética dos Pais). Curiosamente, como comentam os autores, Isaac Abravanel é “o 15º avô do empresário e apresentador de TV [brasileiro] Sílvio Santos”, Senor Abravanel de seu nome verdadeiro.
Aos que quiserem saber mais sobre os painéis de Nuno Gonçalves, descritos pelo Museu Nacional de Arte Antiga, seu actual repositório, como “um dos mais notáveis retratos colectivos da pintura europeia”, aconselha-se uma passagem pela versão on-line do excelente trabalho de António Salvador Marques, intitulado Painéis de S. Vicente de Fora - Modo de Utilização.