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domingo, janeiro 25

Diálogos Inter-Religiosos

Resposta ao Guia dos Perplexos

Torah(Parte I – O Conceito de Messias no Judaísmo)
A propósito do nosso post sobre o “Credo do Judaísmo”, o José, autor de um excelente blog Católico que há muito faz parte das minhas deambulações diárias pela blogosfera, o Guia dos Perplexos, levantou algumas questões que merecem resposta. Aos leitores menos interessados nestas questões de doutrina religiosa, peço desde já as minhas desculpas pela prosa que se segue. Por isso, tentarei aliviar a densidade “doutrinária” deste post. Mas, por outro lado, pelo imenso respeito que me merece o José e o seu Guia dos Perplexos, senti-me obrigado a responder de forma pública a questões levantadas em público. Devido à complexidade dos temas, resolvi dividi-los em posts diferentes. Aqui vai então a primeira tentativa de esclarecimento.
O primeiro ponto que o José refere (a questão do messias, no ponto 9) está formulada no “Credo do Judaísmo” por oposição à percepção cristã, segundo a qual os judeus “estão à espera” do Messias enquanto Salvador – implicando não só a necessidade deste enquanto figura redentora, mas traduzindo igualmente uma atitude passiva dos judeus “que esperam”. Este messias não existe, de facto, no judaísmo.
Antes de prosseguir, gostaria de deixar bem claro que não tenho aqui a mínima intenção de pretender invalidar a leitura cristã do chamado Antigo Testamento em relação ao messianismo de Jesus (aliás não é esse o papel deste blog). Vou tentar apenas responder às questões levantadas em relação à interpretação judaica do conceito de Messias.
A exegese cristã quanto ao papel messiânico de Jesus (Yeshua Ben Yosef, de seu nome hebraico, ver “Jesus, o Judeu”) diverge grandemente da interpretação judaica da Bíblia Hebraica (Antigo Testamento), em parte como resultado das alterações introduzidas na teologia cristã durante o crescendo de influência política da Igreja no reinado do imperador Constantino, que culminariam no Credo decretado pelo Concílio de Niceia, no ano 325 da Era Comum (que instituiu igualmente outra cisão profunda com o judaísmo: a doutrina trinitária).
Mas primeiro convém definir a palavra original para nos podermos aperceber das diferenças fundamentais entre uma e outra visão. Messias é uma tradução da palavra hebraica moshiach, משיח (em hebraico pronunciado mochiárr), que aparece cerca de 150 vezes na Bíblia Judaica, embora o seu contexto seja invariavelmente contrastante com a visão que lhe é atribuída pelos cristãos.
A palavra משיח significa literalmente “ungido”, numa referência ao acto de “ungir” com óleo (azeite) a cabeça de reis, sacerdotes e mesmo objectos de culto, de forma a iniciá-los ao serviço de Deus. (ver Exodus 29:7, I Reis 1:39 e II Reis 9:3).
Por esta razão existem inúmeros messias na Bíblia Hebraica, uma vez que todos os reis e sacerdotes nela mencionados foram “ungidos” e, como tal, podem ser referidos individualmente como “o ungido” (moshiach - משיח ) – em II Samuel 23:1 lê-se: “E estas são as últimas palavras de David: Diz David, filho de Jessé, e diz o homem que foi levantado em alturas, o ungido [משיח no original hebraico] do Deus de Jacob, e o suave em salmos de Israel.”
Na versão deste versículo na Vulgata Latina é utilizada a palavra christo, de origem grega, que mais tarde seria aplicada exclusivamente a Jesus: “Haec autem sunt verba novissima quae dixit David filius Isai dixit vir cui constitutum est de christo Dei Iacob egregius psalta Israhel”. (Para uma comparação com os originais hebraicos ver também I Samuel 26:11, II Samuel 22:51, Isaías 45:1 e Salmos 20:6.)
A figura de um messias que “há-de vir”, “Ha’Mashiach” (literalmente O Messias), curiosamente, não aparece na Torá propriamente dita, pelo que não poderá nunca ser considerado um princípio central e norteador do judaísmo – isto apesar do messianismo existir em vertentes que examinaremos mais à frente.
A concepção judaica do Messias (“Ha’Mashiach”), no entanto – e aqui o José tem razão –, surge como tema estrutural de promessas proféticas de uma era futura de perfeição e paz universal. Muitas destas passagens referem-se ao messias como um rei temporal que governará Israel, descendendo directamente da casa de David (“Ha’Mashiach Ben David”).(ver Isaías 11:1 a 9 e Oséas 3:4 e 5). Na prática, e segundo os profetas, o Messias será um homem normal, um judeu, filho de um homem e de uma mulher, que ascenderá “ao trono de Israel”, conduzindo a Nação e o Mundo numa era de paz e prosperidade universais, marcada pelo fim das guerras e da intolerância, durante a qual todos os povos coexistirão de forma pacífica.
O corte entre as visões judaica e cristã assume-se aqui de forma reforçada. Os judeus crêem que não há “segundas chances” na era messiânica (Olam Ha’Ba, literalmente “o mundo que há-de vir”), e que esta começará assim que o Messias for revelado. Na sua concepção judaica, o Messias também não é e não pode ser objecto de veneração ou adoração.
Quando no post sobre o “credo” do judaísmo referi que “os judeus não estão à espera da vinda de alguém" (reforçando a parte da “espera”) a intenção era transmitir que no conceito judaico de Messias não está implícita qualquer salvação ou expiação, uma vez que cada indivíduo é responsável pela correcção das suas próprias imperfeições e erros. Olam Ha’Ba poderá ser, se quisermos, o “fim dos tempos”, mas para lá se poder chegar, os judeus acreditam na necessidade de um papel activo na evolução espiritual e individual do conjunto da Humanidade (ver pontos 3 e 4 do “Credo do Judaísmo”). A este respeito, devo confessar que fiquei agradavelmente surpreendido com os conhecimentos do José, nas interrogações que coloca no seu Guia dos Perplexo, em relação à Cabalá Lurianica e ao conceito de Tikkun Ha’Olam, o que demonstra o seu extraordinário interesse de ir além das fronteiras tradicionais da sua fé (o catolicismo), uma qualidade imensamente rara e por isso extraordinária.
Através da História, e em grande medida devido à condição de perseguição permanente, e consequente desespero, em que viveram as comunidades judaicas espalhadas pelo mundo, surgiram aqui e além homens que chegaram a ser vistos como messias, não porque prometiam uma qualquer “salvação da alma”, mas porque os profetas do judaísmo profetizaram um líder temporal que traria a paz e o fim dos males terrenos, em conjugação com a recta final do processo de “retorno ao Criador” – entre estes contam-se Simon Bar Kochba e Shabbetai Zevi, os mais conhecidos.
Em Portugal, nos finais do século XV, os cristãos-novos (e cripto-judeus) Luís Dias, alfaiate de Setúbal, e Gonçalo Anes (o Bandarra), sapateiro de Trancoso, conheceram os cárceres da Inquisição (e as suas fogueiras, no caso do alfaiate) por serem apontados como “Messias”, e misturarem em trovas e profecias as aspirações do messianismo judaico com o patriotismo sebastianista, também ele intrinsecamente messiânico. Aqui, D. Sebastião, ele sim um rei, representava para os cristãos-novos portugueses a perfeita encarnação messiânica do monarca temporal que o judaísmo – ao qual foram obrigados a abjurar publicamente mas continuavam a manter em segredo – prometia.