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quinta-feira, janeiro 29

Contribuições para a História Judaica de Portugal V

 Index et Catalogus Librorum prohibitorum, mandato Illustriss. ac Reverendis (Department of Special Collections da University of Notre Dame – The Inquisition Collection)A Inquisição e o Declínio
do Império Português I

“Quando os Portugueses conquistaram o Atlântico sul, estavam na vanguarda da técnica de navegação. Um empenho em aprender com cientistas, muitos deles judeus, fizera que os conhecimentos adquiridos fossem directamente traduzidos em aplicações práticas; e, quando, em 1492, os Espanhóis decidiram compelir os seus judeus a professar o cristianismo ou abandonar o país, muitos encontraram refúgio em Portugal, nessa época mais complacente quanto aos seus sentimentos antijudaicos. Mas em 1497, pressões da igreja católica e de Espanha levaram a coroa portuguesa a abandonar essa tolerância. Cerca de 70 mil judeus (1) foram forçados a um baptismo espúrio, embora válido como sacramento. Em 1506, Lisboa viu o seu primeiro "progrom", que deixou um saldo de 2000 "cristão-novos" mortos (2) (a Espanha já adoptava essa prática há duzentos anos). Desde então, a vida intelectual e científica de Portugal desceu a um abismo de intolerância, fanatismo e pureza de sangue.
O declínio foi gradual. A Inquisição Portuguesa só foi instalada na década de 1540 e o seu primeiro auto-de-fé três anos depois; mas só se tornou sombriamente implacável na década de 1580, depois da união das coroas portuguesa e espanhola. Muitos estrangeiros, comerciantes e homens de ciência, acharam entretanto que a vida em Portugal estava a ficar demasiado perigosa para justificar a saída do país em massa. Levaram com eles dinheiro, experiência comercial, ligações, conhecimentos e – ainda mais importante – aquelas qualidades imensuráveis de curiosidade e inconformismo que constituem o fermento do pensamento.
Foi uma perda, mas em questões de intolerância a maior perda é a que o perseguidor inflige a si próprio. É esse processo de autodiminuição que confere à perseguição a sua durabilidade e a torna, não o acontecimento de um dado momento, ou de um reinado, mas de vidas inteiras, de gerações e de séculos. Em 1513, Portugal precisava de astrónomos; na década de 1520, a liderança científica tinha acabado. O país tentou criar uma nova tradição astronómica e matemática cristã, mas fracassou, até porque os bons astrónomos foram alvo da suspeita de judaísmo.
Tal como em Espanha, os Portugueses esforçaram-se ao máximo em fechar-se a influências estrangeiras e heréticas. A educação formal era controlada pela Igreja, que mantinha um currículo medieval centrado na gramática, retórica e argumentação escolástica. Característicos eram o exibicionismo e o bizantinismo (247 regras rimadas e decoradas da sintaxe de substantivos latinos). A única ciência de nível superior seria encontrada na faculdade de medicina de Coimbra. Mesmo aí, porém, poucos professores estavam dispostos a trocar Galeno por Harvey, ou a ensinar as ideias ainda mais perigosas de Copérnico, Galileu e Newton, todos banidos pelos Jesuítas ainda em 1746.
Deixou de haver mais jovens portugueses a estudar no estrangeiro e a importação de livros era rigorosamente controlada por fiscais enviados pelo Santo Ofício para inspeccionar os navios que chegavam e visitar livrarias e bibliotecas. Um índice de obras proibidas foi preparado pela primeira vez em 1547; sucessivas ampliações culminaram na gigantesca lista de 1624- a mais recomendada para salvar as almas portuguesas.
(…)
Claro que era impossível isolar um país envolvido no concerto da Europa e na disputa por um império. Os diplomatas e agentes portugueses no estrangeiro regressavam ao país com a mensagem de que o resto do mundo estava a avançar, enquanto Portugal ficava parado no tempo. Esses "estrangeirados" – uma alcunha pejorativa – atraíram profundas suspeitas, pois estavam "contaminados". A sua rejeição estava implícita no orgulho português. Profundamente desastroso. Eles perceberam o que pouco portugueses podiam ou queriam ver: que a busca da pureza cristã era estúpida, que o Santo Ofício da Inquisição era um desastre nacional; que a Igreja devorava a riqueza do país; que o fracasso do governo em promover a agricultura e a indústria tinha reduzido Portugal ao papel de ‘melhor e mais lucrativa colónia da Inglaterra’. Através desse isolamento auto-imposto, os Portugueses perderam a competência até mesmo nas áreas que anteriormente tinham dominado. ‘De líderes na vanguarda da teoria e prática de navegação passaram a andar sem rumo muito atrás dos outros", como afirmou D. Luís da Cunha, por altura da assinatura do Tratado de Methuen’.”

“A Riqueza e a Pobreza das Nações: Porque são algumas tão ricas e outras tão pobres”, David S. Landes, Gradiva 2002 (via Bruno Ramos, blog Granito)

::Notas da Rua da Judiaria::

1) Os historiadores debatem ainda o número de judeus portugueses convertidos à força ao catolicismo, mas estima-se que este ascenda a mais de 150 mil pessoas. É, mesmo assim, consensual que existiam no reino de Portugal por alturas de 1497 cerca de 200 mil judeus – numa população total sensivelmente superior a um milhão de portugueses. Apenas uma pequena percentagem terá conseguido emigrar. Os que ficaram, tornaram-se “cristãos-novos” forçados (cripto-judeus na maior parte dos casos) – obrigados a uma existência de medos e dualidades, aos poucos os judeus secretos foram abandonando as actividades intelectuais (astronomia, medicina, física, matemática, filosofia) que até então tinham marcado o judaísmo português e ibérico. A dimensão da comunidade judaica portuguesa dos finais do século XV e princípios do século XVI era tal que fora de Portugal havia uma confusão recorrente entre “português” e “judeu”: “Um professor de grego da França, convidado a ensinar a sua disciplina em Portugal, aceitou o convite, mas tratou antes de aprender ele próprio a língua hebraica, que supunha fosse a língua oficial dos habitantes do reino, seus futuros discípulos.” (Elias Lipner, “O Sapateiro de Trancoso e o Alfaiate de Setúbal”, p.19). “Certo padre português, cristão-velho, interpelando um cardeal romano a respeito de um benefício eclesiástico que este dera a um português cristão-novo, ouviu do interpelado a seguinte resposta: ‘Andai, que vós portugueses sois judeus, e o vosso rei é o rei dos judeus’.” (Mendes dos Remédios, “Os Judeus em Portugal”, Vol. II, p.417)

2) O número de mortos resultantes do progrom de Lisboa, ocorrido em Abril de 1506, também não é certo, embora a maior parte das fontes e testemunhos da época apontem para cerca de quatro mil pessoas (cripto-judeus / cristãos-novos) chacinadas na sequência de motins antijudaicos incitados por frades dominicanos. No Rossio, contam Samuel Usque e Damião de Góis, o chão ficou “tapado com montanhas de corpos mutilados”. “Mais de quatro mil almas morreram(...)”, escreveu Samuel Usque em “Consolação às Tribulações de Israel” (1553).

O massacre de judeus e cristãos-novos em Lisboa, 1506, panfleto anónimo alemão

“Von dem Christeliche / Streyt, kürtzlich geschehe / jm. M.CCCCC.vj Jar zu Lissbona / ein haubt stat in Portigal zwischen en christen und newen chri / sten oder juden , von wegen des gecreutzigisten [sic] got.”
Panfleto anónimo, impresso na Alemanha (presumivelmente poucos meses depois do massacre de Lisboa). O “progrom” de 1506 contra os judeus de Lisboa é descrito em detalhe e as matanças contadas ao pormenor. A gravura do frontispício mostra os corpos mutilados e envoltos em chamas de dois judeus portugueses, dois irmãos, os primeiros a morrer num massacre que vitimou mais de 4 mil pessoas.

(Esta gravura é reproduzida aqui na Judiaria a partir de uma cópia publicada pelo Hebrew Union College, Cincinnati, OH. O original, bastante raro, encontra-se na Houghton Library, Harvard University)