quinta-feira, fevereiro 12
Sagrada Violência
ou Jesus Segundo Mel Gibson
ou Jesus Segundo Mel Gibson
Foi com alguma antecipação (receio talvez seja a palavra mais apropriada) que assisti ontem à noite, aqui em Los Angeles, a um screening privado do polémico filme de Mel Gibson, The Passion of the Christ, ainda por estrear. Fiquei, confesso, bastante perturbado com o filme. Não pela mensagem. Nem sequer pelas razões que têm soprado as chamas da controvérsia – embora o alegado antisemitismo da narrativa mereça ser analisado. O que mais me chocou foi a extrema violência gráfica com que Mel Gibson resolveu pintar as últimas 12 horas da vida de Jesus.
Sangue a rodos, intermináveis grandes planos de feridas e uma violência brutal marcam todo o filme. Só a cena da flagelação de Jesus pelos soldados romanos dura mais de 15 minutos... é claro que isto não é nada quando comparado com o que de melhor se faz na “série B” de Hollywood. Mas também é verdade que o famoso Texas Chainsaw Massacre nunca foi usado para validar doutrinas religiosas. Na melhor das hipóteses, The Passion of the Christ é um cruzamento de teologia tridentina com Braveheart, com a crueza nua da violência extrema (ver um exemplo aqui) a ser usada aqui para sublinhar o papel sacrificial do messias cristão – uma opção doutrinária óbvia, escolhida em detrimento, por exemplo, da mensagem positiva dos evangelhos.
Mas porque razão estarei eu aqui a escrever sobre um filme de uma religião que não é a minha? A pergunta é perfeitamente legítima. Primeiro, porque a figura central do filme, Jesus, é, para todos os efeitos, um judeu – Yeshua ben Yosef, de seu nome hebraico original (para mais ver Jesus, o judeu). Segundo, porque o filme coloca o ónus da morte de Jesus exclusivamente nos judeus, não só nas autoridades do Templo, mas também colectivamente no povo de Jerusalém, livrando de responsabilidades aquele que os historiadores apontam como principal responsável pela execução do messias cristão: o governador romano, Poncio Pilatos.
Não tenho intenção de discutir aqui o carácter histórico dos evangelhos (textos sagrados de uma religião que não é a minha), mas quem já leu Mateus, Lucas e João sabe que existem contradições e inconsistências entre eles. Mas tudo isso é perfeitamente secundário, uma vez que a essência dos textos (escritos entre 80 a 150 anos após a crucificação) é doutrinária e não histórica.
No filme, seguindo quase à risca o relato evangélico de Mateus, o governador romano da Judeia, Poncio Pilatos, é mostrado como o relutante executor de Jesus, crucificando-o apenas “porque os judeus o queriam”. Esta bonomia apresenta-se em flagrante contraste com o que se sabe de Pilatos. Historiadores da época, como os judeus Flavius Josephus e Philo de Alexandria, descreveram de forma extensa e detalhada a brutalidade do governador romano da Judeia. “Inflexível, casmurro e cruel” foram adjectivos usados por Philo de Alexandria para descrever Pilatos, acusando-o ainda de “incomensuráveis actos de crueldade contra os judeus”, incluindo execuções de prisioneiros sem julgamento. A crucificação, aliás, era uma pena romana aplicada exclusivamente aos crimes de insubordinação política. Jesus é crucificado por alegadamente se intitular “o rei dos judeus” – o que Pilatos poderia ter recebido como um insulto à incontestável autoridade romana sobre a província.
Curiosamente, a carreira de Pilatos acabaria em desgraça precisamente por causa da sua brutalidade: no ano 36 é demitido e chamado a Roma pelo imperador Tibério, depois de ter ordenado o massacre de uma multidão de seguidores de um profeta samaritano.
Por tudo isto, os relatos evangélicos da sua relutância em condenar Jesus são lidos pelos historiadores como uma tentativa dos cristãos primitivos de tornar a narrativa da Paixão o menos censurável possível aos olhos romanos.
Quanto ao aparente antisemitismo, tanto dos textos evangélicos como do filme de Gibson, compreendo e aceito os primeiros, mas não consigo entender o segundo. Passo a explicar. Sempre que existiu uma cisão em qualquer religião, a identidade da nova facção é imposta primariamente por negação da anterior. Por isso é absolutamente compreensível que os evangelhos – sublinho textos doutrinários e não históricos – revelem algum ressentimento contra as autoridades religiosas da “estrutura mãe”. Séculos mais tarde, os escritos de Martinho Lutero ou Calvino viriam a revelar o mesmo sentimentos de revolta e negação voltados agora contra a Igreja Católica.
Agora, para ler as entrelinhas do filme de Gibson é necessário analisar a “fonte”. Mel Gibson é partidário de um grupo ultraconservador, os Servos da Sagrada Família, saído da Congregação São Pio X, fundada pelo cardeal Marcel Lefebvre – excomungado por João Paulo II em 1988, por desobediência, depois de consagrar quatro bispos sem autorização do Vaticano.
Para este movimento cismático (conhecido como “tradicionalista”), os aspectos doutrinários mais marcantes são a celebração da missa em latim (tridentina), o apelo à confissão diária dos crentes e a enfatização dos “tormentos do Inferno” para os que cometerem pecados mortais. Este “movimento tradicionalista” católico recusa aceitar as reformas decretadas pelo Concílio Vaticano II – entre elas a rejeição de que os judeus seriam de alguma forma responsáveis pela morte de Cristo, uma doutrina que a Igreja acalentou durante séculos, e que esteve na base de perseguições, chacinas, progroms e de um antisemitismo latente que se enraizou no mundo católico. Ao criar a Sociedade São Pio X, o cardeal Marcel Lefebvre propunha-se lutar contra as reforma ecuménicas do Vaticano II, por ele descritas como “marxistas” e “protestantes”.
É no seio desta “seita” católica ultraconservadora que surge a base doutrinária para o filme de Mel Gibson. “Eu vou a uma igreja onde e celebrada apenas missa em latim, segundo os ritos anteriores ao Vaticano II. Nos anos 60 muita gente dizia que tinha de se evoluir com os tempos, mas a verdade é que o criador instituiu coisas muito específicas, e nós não as podemos mudar só porque nos apetece”, disse Mel Gibson em 2001 em entrevista ao diário norte-americano USA Today. Mais recentemente, em declarações ao jornal italiano Il Gionale, Gibson foi mais longe atacando o Vaticano e o papa, chamando-lhe “um lobo disfarçado de ovelha”.
O pai do actor, Hutton Gibson, com 84 nos, é bem conhecido nos círculos tradicionalistas católicos. Autor de vários livros em que ataca abertamente a hierarquia máxima da Igreja, como “Is the Pope Catholic... Enough?”, o pai de Mel defende que a abertura desenhada com o Concílio Vaticano II foi desastrosa para a fé católica, advogando a necessidade de “voltar atrás”. Hutton Gibson é também um revisionista histórico, afirmando nos seus escritos que o Holocausto nunca existiu (ver nota biográfica Hutton Gibson - Wikipedia). Por isso, não me espantei quando comecei a ver esboços de uma campanha de promoção do filme de Mel Gibson em vários blogs portugueses de extrema-direita (para não dizer mesmo fascistas).
Agora, depois de ter visto o filme, há algumas conclusões a tirar. Como experiência cinematográfica pura e dura, é extremamente pobre e brutalmente violento. Já nem sequer vou mencionar o facto de ser integralmente falado em latim e num aramaico mal pronunciado. Salva-se apenas uma fotografia (cinematografia para os meus leitores brasileiros) razoável que consegue alguns momentos eficazes.
Mas, muito mais importante é perceber se os meus amigos cristãos se vão rever neste The Passion of the Christ, um filme inquestionavelmente enraizado em doutrinas cismáticas e marginais. Será que a mão cinematográfica de Mel Gibson fará vingar a visão ultraconservadora, e porque não revanchista, do cardeal Lefebvre? A pergunta fica no ar. Que me respondam os meus amigos cristãos. Sim, José, Fernando Macedo, Tiago de Oliveira Cavaco, David e Vincent Bengelsdorff, gostava de saber o que pensam.
Para mais sobre duas figuras centrais na Paixão de Jesus num contexto histórico aconselho uma passagem por Profiles of Joseph Caiaphas and Pontius Pilate, key figures in the arrest, trial and crucifixion of Jesus. (University of Missouri). Um excelente livro sobre o governador romano da Judeia é Pontius Pilate by Ann Wroe, editado nos EUA pela Random House. Uma recensão do livro de Ann Wroe pode ser lida aqui,
FT August/September 2000: Player in a Cosmic Drama
Sangue a rodos, intermináveis grandes planos de feridas e uma violência brutal marcam todo o filme. Só a cena da flagelação de Jesus pelos soldados romanos dura mais de 15 minutos... é claro que isto não é nada quando comparado com o que de melhor se faz na “série B” de Hollywood. Mas também é verdade que o famoso Texas Chainsaw Massacre nunca foi usado para validar doutrinas religiosas. Na melhor das hipóteses, The Passion of the Christ é um cruzamento de teologia tridentina com Braveheart, com a crueza nua da violência extrema (ver um exemplo aqui) a ser usada aqui para sublinhar o papel sacrificial do messias cristão – uma opção doutrinária óbvia, escolhida em detrimento, por exemplo, da mensagem positiva dos evangelhos.
Mas porque razão estarei eu aqui a escrever sobre um filme de uma religião que não é a minha? A pergunta é perfeitamente legítima. Primeiro, porque a figura central do filme, Jesus, é, para todos os efeitos, um judeu – Yeshua ben Yosef, de seu nome hebraico original (para mais ver Jesus, o judeu). Segundo, porque o filme coloca o ónus da morte de Jesus exclusivamente nos judeus, não só nas autoridades do Templo, mas também colectivamente no povo de Jerusalém, livrando de responsabilidades aquele que os historiadores apontam como principal responsável pela execução do messias cristão: o governador romano, Poncio Pilatos.
Não tenho intenção de discutir aqui o carácter histórico dos evangelhos (textos sagrados de uma religião que não é a minha), mas quem já leu Mateus, Lucas e João sabe que existem contradições e inconsistências entre eles. Mas tudo isso é perfeitamente secundário, uma vez que a essência dos textos (escritos entre 80 a 150 anos após a crucificação) é doutrinária e não histórica.
No filme, seguindo quase à risca o relato evangélico de Mateus, o governador romano da Judeia, Poncio Pilatos, é mostrado como o relutante executor de Jesus, crucificando-o apenas “porque os judeus o queriam”. Esta bonomia apresenta-se em flagrante contraste com o que se sabe de Pilatos. Historiadores da época, como os judeus Flavius Josephus e Philo de Alexandria, descreveram de forma extensa e detalhada a brutalidade do governador romano da Judeia. “Inflexível, casmurro e cruel” foram adjectivos usados por Philo de Alexandria para descrever Pilatos, acusando-o ainda de “incomensuráveis actos de crueldade contra os judeus”, incluindo execuções de prisioneiros sem julgamento. A crucificação, aliás, era uma pena romana aplicada exclusivamente aos crimes de insubordinação política. Jesus é crucificado por alegadamente se intitular “o rei dos judeus” – o que Pilatos poderia ter recebido como um insulto à incontestável autoridade romana sobre a província.
Curiosamente, a carreira de Pilatos acabaria em desgraça precisamente por causa da sua brutalidade: no ano 36 é demitido e chamado a Roma pelo imperador Tibério, depois de ter ordenado o massacre de uma multidão de seguidores de um profeta samaritano.
Por tudo isto, os relatos evangélicos da sua relutância em condenar Jesus são lidos pelos historiadores como uma tentativa dos cristãos primitivos de tornar a narrativa da Paixão o menos censurável possível aos olhos romanos.
Quanto ao aparente antisemitismo, tanto dos textos evangélicos como do filme de Gibson, compreendo e aceito os primeiros, mas não consigo entender o segundo. Passo a explicar. Sempre que existiu uma cisão em qualquer religião, a identidade da nova facção é imposta primariamente por negação da anterior. Por isso é absolutamente compreensível que os evangelhos – sublinho textos doutrinários e não históricos – revelem algum ressentimento contra as autoridades religiosas da “estrutura mãe”. Séculos mais tarde, os escritos de Martinho Lutero ou Calvino viriam a revelar o mesmo sentimentos de revolta e negação voltados agora contra a Igreja Católica.
Agora, para ler as entrelinhas do filme de Gibson é necessário analisar a “fonte”. Mel Gibson é partidário de um grupo ultraconservador, os Servos da Sagrada Família, saído da Congregação São Pio X, fundada pelo cardeal Marcel Lefebvre – excomungado por João Paulo II em 1988, por desobediência, depois de consagrar quatro bispos sem autorização do Vaticano.
Para este movimento cismático (conhecido como “tradicionalista”), os aspectos doutrinários mais marcantes são a celebração da missa em latim (tridentina), o apelo à confissão diária dos crentes e a enfatização dos “tormentos do Inferno” para os que cometerem pecados mortais. Este “movimento tradicionalista” católico recusa aceitar as reformas decretadas pelo Concílio Vaticano II – entre elas a rejeição de que os judeus seriam de alguma forma responsáveis pela morte de Cristo, uma doutrina que a Igreja acalentou durante séculos, e que esteve na base de perseguições, chacinas, progroms e de um antisemitismo latente que se enraizou no mundo católico. Ao criar a Sociedade São Pio X, o cardeal Marcel Lefebvre propunha-se lutar contra as reforma ecuménicas do Vaticano II, por ele descritas como “marxistas” e “protestantes”.
É no seio desta “seita” católica ultraconservadora que surge a base doutrinária para o filme de Mel Gibson. “Eu vou a uma igreja onde e celebrada apenas missa em latim, segundo os ritos anteriores ao Vaticano II. Nos anos 60 muita gente dizia que tinha de se evoluir com os tempos, mas a verdade é que o criador instituiu coisas muito específicas, e nós não as podemos mudar só porque nos apetece”, disse Mel Gibson em 2001 em entrevista ao diário norte-americano USA Today. Mais recentemente, em declarações ao jornal italiano Il Gionale, Gibson foi mais longe atacando o Vaticano e o papa, chamando-lhe “um lobo disfarçado de ovelha”.
O pai do actor, Hutton Gibson, com 84 nos, é bem conhecido nos círculos tradicionalistas católicos. Autor de vários livros em que ataca abertamente a hierarquia máxima da Igreja, como “Is the Pope Catholic... Enough?”, o pai de Mel defende que a abertura desenhada com o Concílio Vaticano II foi desastrosa para a fé católica, advogando a necessidade de “voltar atrás”. Hutton Gibson é também um revisionista histórico, afirmando nos seus escritos que o Holocausto nunca existiu (ver nota biográfica Hutton Gibson - Wikipedia). Por isso, não me espantei quando comecei a ver esboços de uma campanha de promoção do filme de Mel Gibson em vários blogs portugueses de extrema-direita (para não dizer mesmo fascistas).
Agora, depois de ter visto o filme, há algumas conclusões a tirar. Como experiência cinematográfica pura e dura, é extremamente pobre e brutalmente violento. Já nem sequer vou mencionar o facto de ser integralmente falado em latim e num aramaico mal pronunciado. Salva-se apenas uma fotografia (cinematografia para os meus leitores brasileiros) razoável que consegue alguns momentos eficazes.
Mas, muito mais importante é perceber se os meus amigos cristãos se vão rever neste The Passion of the Christ, um filme inquestionavelmente enraizado em doutrinas cismáticas e marginais. Será que a mão cinematográfica de Mel Gibson fará vingar a visão ultraconservadora, e porque não revanchista, do cardeal Lefebvre? A pergunta fica no ar. Que me respondam os meus amigos cristãos. Sim, José, Fernando Macedo, Tiago de Oliveira Cavaco, David e Vincent Bengelsdorff, gostava de saber o que pensam.
Para mais sobre duas figuras centrais na Paixão de Jesus num contexto histórico aconselho uma passagem por Profiles of Joseph Caiaphas and Pontius Pilate, key figures in the arrest, trial and crucifixion of Jesus. (University of Missouri). Um excelente livro sobre o governador romano da Judeia é Pontius Pilate by Ann Wroe, editado nos EUA pela Random House. Uma recensão do livro de Ann Wroe pode ser lida aqui,
FT August/September 2000: Player in a Cosmic Drama