<$BlogRSDUrl$>

domingo, janeiro 11

A Noite, o Que é?
Hoje, madrugada de domingo, as saudades e o frio sentem-se nos ossos. Engana-se a distância, o tempo e o espaço, relendo.

Francisco José Viegas “Jaime Ramos voltou como voltara outras vezes, rendido a um mistério mais intenso do que a morte, mais doloroso do que a evidência da morte. Voltou, não se lembraria quanto tempo depois, mas voltou nessa mesma noite e olhou de novo para o corpo deitado sobre a mesa, sabendo que seria a última vez que o faria – mas pressentindo que aquelas imagens voltariam até que o pesadelo acabasse, o que demoraria muito tempo.
Foi então que acendeu o charuto e, ao aspirar o primeiro fumo, dando-se conta do cenário, lembrou a morte, a morte mais pura de todas, a morte que se acolhe como uma benção e como uma música vinda do interior da terra. Lembrou a morte como um passeio final ao cemitério, num dia de chuva, um cemitério de aldeia, ladeado de muros onde cresciam braços de hera, silvas, ramos soltos de árvores rasteiras, um cemitério num dia de chuva com um caixão de madeira, simples, a descer à terra, ao interior da terra, e dentro do caixão Jaime Ramos vê o seu pai, abandonado como numa despedida que, apesar de tudo, nesse caso, foi surpreendente. E para lá da chuva vê-se o retrato fino e escurecido de uma aldeia suspensa numa colina sobre o rio, uma casa de pedra, de madeira, de cal, o regresso a casa depois do enterro, o badalar dos sinos como um anúncio de rendição e de alarme. E nesse regresso a casa, muitos anos antes, Jaime Ramos viu a sua mãe, os seus irmãos, os xailes negros cobrindo as cabeças, toda a sua vida, todo o resto da sua vida, uma explosão de neve arrebatando o que nesse instante sobrava da noite, debruçado sobre o corpo estendido sobre a mesa de inox, diante do mostrador da balança que servira para pesar os órgãos do morto um a um, pelo menos os necessários, mais uma ardósia onde se anotam os números que equivalem a operações de uma aritmética simples mas inexacta, que é a da soma das medições, pesos, avaliações, observações. E os estilhaços dessa explosão traziam-lhe o que definira como uma suspeita sobre esses sinais insignificantes e finais, uma espécie de disciplina que a sua cabeça exigia, uma disciplina que evitasse o medo da morte e a vontade de sobreviver, uma disciplina que o levasse a organizar quadros, pistas, silêncios, arquivos, associações. Mas a morte vive em cada gesto, em cada sinal de envelhecimento, em cada minuto, encerrado nesta sala ou respirando a humidade da noite. Qualquer coisa como impressões digitais, autópsia, exame tanatalógico e de toxicologia, carne e osso, pistas descobertas em carne e osso e restos do que foi sangue e é uma matéria a entregar à noite e à podridão. Gestos mágicos. Jaime Ramos conhecia-os. Ilusões. Gestos de ilusão. A vida de um polícia. Que se foda, que se foda, que se foda, dizemos isto muitas vezes enquanto pensamos em nada e em tudo, na vida toda, na morte toda, nos impostos para pagar no fim do ano, nas contas do dia-a-dia, no fumo que se infiltra nos pulmões, no colesterol, que se foda, que se foda, que se foda, um tempo feliz, um tempo infeliz, um tempo em que o paraíso está tão próximo, um tempo em que o paraíso está tão afastado, um tempo e que a felicidade se descobre ao acender um charuto, ao beber um café, um copo de água, uma cerveja guardada como vinho de missa, um tempo colorido de azul como alguns sonhos, um tempo em que nos aproximamos do que nos aproxima do paraíso e da ideia que dele sobra vinda dos sonhos. Não quero morrer já. Não quero. Os cadáveres entram e saem desta sala, mas não quero que chegue a minha vez, tenho de ter tempo, um tempo de ser frio como um risco no céu de uma madrugada de Verão, um polícia vulgar, um polícia com nome, um homem com nome, um homem sem excepções de género, pessoas, declinação. Um homem que não tem de ser imune, um homem que toma duche e pequeno-almoço e sol e ar e tudo. E isso antes de ficarmos rígidos, cheios de manchas arroxeadas, sangue coagulado, um cadáver visto da cabeça aos pés, a distância a que o tiro foi disparado, a direcção do disparo, fragmentos na pele, rasgões nos tecidos, vísceras em formol, os seus extractos mínimos em lâminas observadas ao microscópico, o corpo aberto, o corpo sem corpo, o corpo que volta a ser cosido, lavado, rectificado, vestido como se fosse a um baptizado. Mas o que resta dele são apenas este momentos, fórmulas guardadas num papel, exames de dactiloscopia, de roupa, de estrutura dentária, cicatrizes, DNA nos ossos que já não são ossos mas formações ósseas, frases de peritos, um bisturi apontado para um cadáver, um bisturi que aponta para o único corpo onde se grava o segredo de uma morte e de uma vida, e paz, paz profunda, paz de objectos recolhidos que não têm senão um aparente sentido, uma aparente verdade.
Jaime Ramos levantou-se. Havia vozes ao fundo do corredor, duas vozes em surdina. Havia a noite. Toda a noite.”

Francisco José Viegas, Um Céu Demasiado Azul, Edições Asa, 1995