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segunda-feira, fevereiro 9

Estilo
Herberto Helder

– Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é o modo subtil de transferir a confusão e a violência da vida para um plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos , do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos. (...)

Estilo, Os Passos em Volta, 1963

Herberto HelderHerberto Helder nasceu no Funchal, na ilha da Madeira, em 1930, no seio de uma família de origem judaica. Em 1946, foi para Lisboa, onde terminou o liceu. Depois de uma rápida passagem pelo curso de Direito, em Coimbra, frequentou durante três anos a Faculdade de Letras de Lisboa. Em 1955, após um breve regresso à Madeira, Herberto Helder volta de novo a Lisboa, frequentando o Café Gelo, ao lado de Mário Cesariny, Luiz Pacheco, António José Forte, João Vieira e Hélder Macedo. Colabora em várias publicações literárias e publica o seu primeiro livro, O Amor em Visita, em 1958. Ao longo dos anos, Herberto Helder desempenhou várias profissões e viajou para vários países. Personagem discretíssima, foi distinguido em 1983 com o Prémio de Poesia do Pen Club Português, pelo livro A Colher na Boca. Em 1994, foi-lhe atribuído o Prémio Pessoa pelo conjunto da sua obra, distinção que recusou. (Nota biográfica via Herberto Helder (Biografia), Instituto Camões)