quinta-feira, maio 20
O “senhor Sharafat”: dois homens teimosos e muitos mortos

Cada israelita nas ruas sabe qual é a solução, da mesma forma que cada palestiniano também a conhece. Mesmo Ariel Sharon e Yasser Arafat sabem qual é a solução: paz entre dois estados, fundamentada sobre a partilha da terra com base na realidade demográfica e nas fronteiras de Israel pré-1967.
Durante um longo período de insónias, às vezes penso que gostava de acreditar em fantasmas. Dou voltas na cama e imagino que sou capaz de conjurar os fantasmas de todas as crianças mortas, israelitas e palestinianas, para assombrarem o senhor Sharon e o senhor Arafat. Imagino que sou capaz de juntar estes inocentes em volta das camas dos dois líderes; dois homens, ambos com mais de 70 anos, um prisioneiros do outro, um à mercê do outro. Cada um pronto para agir diariamente exactamente como prevê o adversário, a atirar mais combustível às chamas, a derramar ainda mais sangue.
Às vezes, nestas noites sem dormir eu vejo os dois homens condensados na personagem única de um Nero perverso, que se diverte brincando com o fogo, rindo selvaticamente enquanto abana as chamas. Durante estas noites problemáticas, acabo também por desejar o oposto – que Sharon e Arafat não sejam assombrados pelos fantasmas das crianças mortas, mas em vez disso sejam levados para dormir longe, durante semanas e meses, acordando apenas depois da assinatura de um tratado de paz.
A História jamais esquecerá as suas ofensas. As suas culpas. Porque a solução existe. Está aqui, visível e manifesta em frente de todos nós. Todos os israelitas e todos os palestinianos sabem que esta terra será dividida em duas nações soberanas, transformando-se em duas casas geminadas onde moram duas famílias. Mesmo aqueles que abominam este futuro já sabem, no fundo dos seus corações, que tudo isto é inevitável.
Suspeito que mesmo os dois irmãos siameses Sharon e Arafat – eu agora chamo-lhes “Senhor Sharafat” – sabem que será assim. Mas são sufocados pelo medo e a estagnação. Vivem dominados por um passado manchado de sangue. São reféns um do outro, tanto quanto a dinâmica histórica do conflito do Médio Oriente se tornou refém dos seus medos, da sua imobilidade.
Um dia, quando se alcançar um tratado de paz, e o embaixador palestiniano apresentar as suas credenciais ao presidente de Israel na secção ocidental de Jerusalém, enquanto o embaixador israelita as apresenta ao presidente palestiniano em Jerusalém oriental, seremos todos obrigados a rir da estupidez do nosso passado. Mas, mesmo por entre esse riso, seremos obrigados a responder por tanto sangue inocente derramado. As mães e os pais dos mortos não rirão connosco.”
Amos Oz, escritor israelita e activista pela paz. Artigo publicado no New York Times a 12 de Março de 2002.
NOTA – Sobre o último romance de Amos Oz publicado em Portugal, O Mesmo Mar (Edições Asa), José Mário Silva, do BdE - Blogue de Esquerda (II), escreve uma muito boa recensão na edição de hoje do Diário de Notícias, sob o título Cantata para cinco vozes perdidas e muitas sombras. Vale a pena ler. O romance e o que sobre ele escreveu José Mário Silva.