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quarta-feira, junho 23

Gravura do livro ‘Poema da Rainha Ester’, de João Pinto Delgado (1627)

João Pinto Delgado,
Poeta Marrano


Apesar de virtualmente desconhecido e ignorado em Portugal, João Pinto Delgado é considerado o maior poeta marrano* do século XVII – equiparado a Luis de León, Garcilaso de la Vega e outros nomes grandes da Época Dourada. Nascido em Portimão, em 1580 – o ano provável da morte de Luís de Camões –, era o mais velho dos três filhos de Gonçalo Delgado e neto de um poeta menor igualmente chamado João Pinto Delgado – com quem seria muitas vezes confundido. Aos 20 anos deixa o Algarve e muda-se com a família para Lisboa, com o objectivo de estudar e prosseguir as suas ambições literárias. É na capital – entretanto já sob o domínio espanhol da dinastia Filipina – que toma contacto pela primeira vez com as obras de Jorge Manrique, Garcilaso, Herrera, Góngora e Luis de León, que na época circulavam sob a forma de manuscritos. Apesar de existirem alguns poemas seus em português, o grosso da sua obra foi originalmente escrito em espanhol.
Em 1624, João Pinto Delgado parte para Ruão para se juntar aos seus país, que entretanto tinham escapado à Inquisição portuguesa. É nesta cidade francesa – onde o seu pai é um dos líderes da comunidade marrana ibérica ali radicada – que publica uma colecção de poemas que viria a cimentar a sua reputação literária: Poema de la Reyna Ester. Lamentaciones del Profeta Ieremias. Historia de Rut, y varias Poesias.
Pouco depois da Inquisição espanhola ter enviado um emissário a Ruão para investigar os cripto-judeus em França, a família de João Pinto Delgado parte para Antuérpia e logo a seguir para Amsterdão. Aqui, perante a relativa tolerância religiosa holandesa, passa a praticar o judaísmo de forma aberta e livre pela primeira vez, e João passa a chamar-se Moshe (Moisés) Pinto Delgado. Entre 1636 e 1640 torna-se um dos sete parnasim (governadores) da Yeshiva (seminário religioso) Talmude Torá de Amsterdão, onde na altura estudava o pequeno Baruch (Bento) Spinoza.
Na sua obra poética, João Pinto Delgado busca os seus temas frequentemente na Bíblia Hebraica, uma tendência que partilha com os poetas marranos da época. Tem uma atracção particular por histórias que relatam o poder de Deus para resgatar Israel em tempos de sofrimento, tal como o demonstram as narrativas de Ester e do Êxodo, ambos por ele adaptadas poeticamente.
Em Lamentaciones del Profeta Ieremias, João Pinto Delgado discorre sobre as tragédias da história de Israel, apresentando a visão de que o povo é responsável pelo seu sofrimento por ter falhado aderir por completo à Lei de Moisés. Este é um tema recorrente da literatura marrana, derivado em grande medida de sentimento de culpa em relação à sua própria observância religiosa judaica, disfarçada sob a falsa capa do omnipresente catolicismo.
Na poesia de João Pinto Delgado transparece a sua noção de que a Inquisição seria um instrumento de Deus para trazer os marranos de volta ao judaísmo, acordando neles a firme noção das suas origens. João Pinto Delgado morreu em Amsterdão, a 23 de Dezembro de 1653.

Publica-se hoje aqui na Rua da Judiaria a primeira de três partes de La Salida de Lisboa, um dos raros poemas autobiográficos de João Pinto Delgado, retirado de um manuscrito da colecção Etz Haim, de Amsterdão, publicado pela primeira vez por pelo historiador I.S. Révah no artigo “Autobiographie d’un Marrane” (Revue des Études Juives, 1961).

* Marrano é o termo pelo qual habitualmente se designam os judeus portugueses e espanhóis (e os seus descendentes) forçados a converter-se ao catolicismo para salvar as suas vidas. Durante séculos, o termo foi considerado pejorativo, acreditando-se que derivava da palavra espanhola para porco (marrã em português arcaico). No entanto, actualmente existe uma corrente de linguistas e historiadores que defendem uma outra proveniência para o termo: marrano terá surgido da contracção das palavras hebraicas márr (amargo) e anússe (forçado). Assim, marranos quererá dizer “aqueles forçados à amargura”. Na liturgia da Páscoa Judaica, por exemplo, são utilizadas “ervas amargas” (márrór), para recordar a amargura da escravidão no Egipto. Em hebraico, os marranos são simplesmente designados como anussim – os forçados.
Entre os mais célebres marranos portugueses sobressai, obviamente, o nome de Baruch (Bento) Espinoza
(ver Benedict De Spinoza [Internet Encyclopedia of Philosophy]).

La Salida de Lisboa (Parte I)


Aquí está la infame puerta,
la del olivo y la espada,
Para salir tan cerrada,
Y para entrar tan abierta.

Si en ti la paz se destierra,
no eres del ramo capaz,
Porque uno promete paz
y el outro la guerra.

Recoge, o nave, a Sodoma;
sólo a su cómplice embarca,
que, como no eres el Arca,
no hay que esperar la paloma.

Mancha tu cuchillo fiero
y queda pendiente aquí:
quedará la insignia en ti
como blasón verdadero.

Y tú, el más fiero león,
que matas quien no te ofende,
por mano de quien te entiende
tendrás la satisfacción.

Y aunque nace tu alegría
viendo a tantos perecer,
si a muchos lo hiciste ver,
también has de ver tu dia.

Si nuestro pecado obliga
a sufrir tanto rigor,
considera que el Señor,
si disimula, castiga.

Si parece que se olvida
de castigar su enemigo,
es sólo porque el castigo
ha de ser más que en la vida.

Porque el cielo más se indine,
fabricaste tu palacio
donde diste um breve espacio
para que el cuerpo se incline.

La doncella, entre el tormento,
estando en la vida incierta,
medio viva e medio muerta,
responde a tu pensamiento.

Y entre penas y entre engaños,
su temor no perdonó
al padre que la engendró,
cuanto y más a los extraños.

Niegas la vida a quein niega,
y el que confiessa y se olvida,
si ver remedio, su vida
entre las llamas entrega.

No basta ver que sudó
el pobre com lo que vives,
pues lo que ganó recibes
e coges lo que él sembró.

João Pinto Delgado (1580-1653)
(Continua...)