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sexta-feira, outubro 22


Cabala - as Morfologias de um Velho Ódio


“Os seres humanos esparramam ao vento, premeditada ou inadvertidamente, abundantes palavras em incontáveis combinações, porém são muito poucos os que sabem que aspectos tinham essas palavras em seus dias de grandeza. Algumas chegaram ao mundo depois de uma grande e difícil viagem através das gerações; outras brilharam como relâmpagos e iluminaram repentina e momentaneamente o mundo inteiro, algumas passaram várias transmutações, deixando atrás de si sua estrela e aroma, outras mais serviram de vasilhas para complexos mecanismos de pensamentos profundos e sentimentos exaltados em maravilhosas permutas”.

In “Lo Revelado y lo Encubierto en la Lenguaje”, Haim Nahman Bialik (1873 – 1934), poeta israelita de origem russa.

Confesso que já há algum tempo que estava para escrever este post. Talvez mesmo desde o princípio deste blog. Depois de muito adiar (já lá vai quase um ano que comecei aqui a escrever), não consegui resistir ao desafio lançado por José Teixeira, no seu Ma-Schamba. Sou obrigado a admitir que sempre me perturbou a utilização que na política portuguesa – e no jornalismo, já agora – se faz da palavra cabala. Se à primeira vista este abuso do termo revela, por si só, algumas das piores características da “alma colectiva” portuguesa – entre elas a aparente incapacidade de assumir responsabilidades e a eterna maquinação de conspirações –, uma análise mais aprofundada escava algo bem mais triste.
A palavra cabala é um dos vocábulos da língua portuguesa onde a linguística e a filologia se intersectam com o fanatismo histórico e a intolerância. E com o antisemitismo institucional que durante séculos vigorou em Portugal graças à Inquisição.
Bem distanciada da definição que lhe é dada pelo português corrente, na sua raiz cabala é uma palavra hebraica (קבלה – pronunciada cabalá), habitualmente transliterada também como kabbalah, que significa literalmente “tradição recebida” e, na prática, traduz o conceito místico no judaísmo.
É impossível traçar as origens da cabala com precisão histórica – “monstros sagrados” das religiões comparadas, como Mircea Eliade e Gershom Scholem nunca chegaram a acordo –, mas o seu primeiro marco definitivo é o Livro da Formação (ספר יצירה), uma composição mística com pouco mais de 32 páginas atribuída pela tradição judaica ao patriarca Abraão e alegadamente redigida há mais de 3700 anos. Há cerca de dois mil anos, ainda durante o período mishnaico do judaísmo, o rabino Shimon bar Yohai viria a compor o Livro do Esplendor (ספר הזהר), um tratado de 20 volumes de interpretação da Torá (תורה), escrito em aramaico, que acabaria por se assumir como a obra central da cabala.
Peço desculpa a José Teixeira por transgredir por completo as suas exigências de um post “resumido e fácil”, mas definir a cabala em poucas linhas é uma tarefa absolutamente impossível. Como escreveu Gershom Scholem: “A Cabala não é um sistema único com princípios básicos que possam ser explicados de uma forma simples e directa, mas é antes composta por uma multiplicidade de metodologias diversas, amplamente separadas umas das outras e por vezes completamente contraditórias.” (On the Kabbalah and Its Symbolism, Keter House, Jerusalém, 1965).
Agora, para perceber a metamorfose da palavra no vocabulário português – de definição de um sistema religioso/espiritual do judaísmo até ao actual sinónimo de conspiração, intriga e trama usado na política e no futebol – é necessário mergulhar no universo histórico do Portugal quinhentista.
A Inquisição Portuguesa é decretada oficialmente pelo papa Clemente VII em 1531, iniciando um regime de terror e obscurantismo que viria a subjugar o país até ser finalmente abolida, em 22 de Abril de 1821 (ver A Inquisição e o Declínio do Império Português - Arquivos da Judiaria). Os judeus portugueses seriam os seus alvos primários, a esmagadora maioria dos quais convertidos à força ao catolicismo no seguimento do decreto de expulsão assinado pelo rei Manuel I a 5 de Dezembro de 1496.
Já de si, mesmo nos círculos judaicos tradicionais, a cabala era algo envolto numa aura de mistério, da qual muitos ouviam falar mas poucos sabiam exactamente o que significava. Até ao início do século XX, a esmagadora maioria dos rabinos defendia que o estudo da cabala podia apenas ser desenvolvido por homens casados, versados no Talmude e na Torá, e só depois de completarem 40 anos de idade. No Portugal quinhentista, onde o judaísmo era praticado em segredo e sob o espectro permanente das fogueiras da Inquisição, o secretisimo era ainda mais exacerbado.
Este período da história portuguesa é marcado por um antisemitismo religioso sem paralelo. Para tentar perceber o que isto poderia significar, Jean-Paul Sartre escreveu em Réflexions sur la Question Juive: “O que pesava sobre ele [Judeu] originalmente era a acusação de ser o assassino de Cristo. Alguma vez parámos para ponderar a intolerável situação de homens condenados a viver numa sociedade que adora o Deus que eles são acusados de matar? Originalmente, o Judeu era então um assassino ou o filho de um assassino – o que aos olhos de uma sociedade com um conceito pré-lógico de responsabilidade acaba inevitavelmente por ser a mesma coisa.”
Vistos como párias sociais, os judeus são alvo de uma campanha de vilificação sem tréguas. Palavras como “judeu”, “judiaria” e “judiar” passam a ser usadas em sentido pejorativo, como insulto ou sinónimo de crueldade – quando os judeus eram, eles sim, as vítimas das prisões, torturas e fogueiras inquisitoriais. O mesmo aconteceu com a palavra cabala. Associada à mística judaica, misteriosa aos olhos dos não-iniciados, cabala passa igualmente a partir daí a ter uma conotação negativa, ela própria associada ao secretismo e à conspiração, num sentido lato e sinistro.
Marca visível de um fanatismo e de uma intolerância históricas inegáveis, a versão deturpada destas palavras entrou na linguagem corrente por via da propaganda inquisitorial. E permaneceu através dos séculos.
Agora, 183 anos depois do fim da Inquisição, a palavra cabala jorra das bocas de ministros e dirigentes desportivos, transformada num tributo inconsciente e póstumo à obra daquela que foi a mais nefasta instituição da história portuguesa. Não é preciso um doutoramento em linguística ou semiótica para compreender a importância do vocabulário na moldagem das mentalidades. Basta ler George Orwell ou Aldous Huxley.