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terça-feira, fevereiro 3

Diálogos Inter-Religiosos

Reposta ao Guia dos Perplexos

Rabinos a Estudar o Talmude, Vilna, Lituânia, 1924(Parte II – Os Conceitos de Julgamento e Vida Depois da Morte)


Nesta segunda parte (a primeira [O Conceito de Messias no Judaísmo] pode ser encontrada aqui), vou tentar estabelecer as diferenças fundamentais que separam as visões cristã e judaica em relação às noções de julgamento e vida após a morte. Mais uma vez, peço desculpa aos meus leitores menos dados a estas coisas das religiões comparadas, e questões doutrinárias, pela dimensão deste post – neste caso a expressão correcta nem será post, mas provavelmente estopada . Para os outros, aqui vai a tentativa de resposta às excelentes questões colocadas pelo post do Guia dos Perplexos.
No cristianismo em geral, e no catolicismo em particular, (peço ao José que me corrija caso esteja errado) as doutrinas do “pecado original” e da “corrupção da carne” concluem que o homem é incapaz de se livrar sozinho da sua inexorável bagagem de culpa. Esta desconfiança em relação ao que no judaísmo é descrito como “esforço ético” induz inevitavelmente os cristãos a duvidarem da eficácia do arrependimento enquanto forma única de reconciliação do “pecador” com Deus. Na exegese cristã, o homem está de tal forma imerso em culpa, na sua e na transmitida pelos pecados hereditários da Humanidade, que não existe para ele esperança de poder escapar à perdição sem a assistência da “graça”. No cristianismo essa “graça” é fornecida pelo sacrifício de Jesus, que “expiou os pecados da Humanidade”, segundo o dogma cristão, funcionando tecnicamente como uma “expiação a terceiros”.
A noção de “expiação indirecta”, isto é, o pagamento da punição não por aquele que transgride mas por um substituto, não existe no judaísmo – onde o sentido de justiça é tido como pedra basilar da harmonia do Universo. Na visão judaica, é perfeitamente injusto o sacrifício de uma pessoa inocente em nome das transgressões de outros. É injusto porque a justiça implica que sejam os transgressores a sofrer as consequências da transgressão.
A Torá (os cinco livros de Moisés que abrem o chamado Antigo Testamento) está recheada de exemplos disso mesmo. Quando o Criador ameaça punir aqueles que adoraram o bezerro de ouro, Moisés pede a Deus para ser ele a sofrer o castigo em nome do povo:
E aconteceu que, no dia seguinte, Moisés disse ao povo: Vós pecastes grande pecado; agora, porém, subirei ao Senhor; porventura farei propiciação pelo vosso pecado. Assim, tornou Moisés ao Senhor e disse: Ora, este povo pecou pecado grande, fazendo para si deuses de ouro. Agora, pois, perdoa o seu pecado, se não, risca-me, peço-te, do teu livro, que tens escrito.” (Shemót, Êxodo 32:30 a 32)
A este pedido de “expiação indirecta” de Moisés, a resposta de Deus não podia ser mais clara:
Então disse o Senhor a Moisés: Aquele que pecar contra mim, a este riscarei eu do meu livro.” (Shemót, Êxodo 32:30 a 32)
Na prática, esta resposta assenta num princípio simples – Moisés não pode pagar pelas transgressões do povo de Israel porque apenas aqueles que transgridem têm o dever (e obrigação) de acarretar as consequências. A justiça requer que “aquele que pecar” pague o preço justo das suas próprias acções. Convém aqui salvaguardar que esta punição, no judaísmo, é o resultado lógico de princípios de causa e efeito idênticos aos da física newtoniana, não implicando por isso uma acção directa de Deus. Isto pode ser traduzido numa analogia básica: quem coloca os dedos numa tomada eléctrica sofre um choque, não porque foi “castigado”, mas porque esse é o efeito correspondente à sua acção; os actos praticados no quotidiano obedecem às mesmas regras, traduzidas para um nível espiritual individualizado.
O carácter de responsabilização ética pelos actos individuais (causa e efeito) é um conceito fundamental do judaísmo. O processo de Tikkun (literalmente “correcção”), a que já fiz referência anteriormente aqui na Judiaria, assenta essencialmente nesta necessidade de gradualmente “emendar” e “corrigir” os defeitos da alma para assim se poder evoluir espiritualmente. Esta correcção passa por um processo genuíno de Tchuvá – admissão dos erros, arrependimento honesto, restituição sempre que tal seja viável.
Esta noção é reforçada, entre muitos outros exemplos, nos escritos do profeta Ezequiel:
“Porque razão as pessoas usam esse dito a propósito da terra de Israel: ‘Os pais comeram uvas ácidas e os filhos ficaram com os dentes embotados’? Tão certo como eu viver, diz o Senhor Deus, não hão-de dizer mais tal coisa em Israel, porque todas as almas me pertencem e hão-de ser julgadas - tanto pais como filhos, da mesma forma - e a minha regra é esta: É unicamente por causa dos seus pecados que uma pessoa morrerá.” Nevi’im, Yechezqel; Ezequiel 18:2 e seguintes)
Por tudo isto, o conceito de “expiação indirecta” é incompatível com o judaísmo. Agora, aqui entronca a outra questão colocada pelo José no seu post do Guia dos Perplexos: como pode ser esta leitura conciliada com escrituras em que pessoas parecem ser castigadas pelas transgressões dos seus antepassados? Um exemplo concreto deste último caso pode ser encontrado em Shemót; Êxodo 20:5:
“(...) eu, o Senhor, teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a maldade dos país nos filhos até à terceira e quarta geração daqueles que me aborrecem.”
É com base nesta contradição aparente que partimos para a fase seguinte deste post: a vida depois da morte.
Como conciliar esta citação do Livro de Êxodo com esta outra, contida em II Melachim - II Reis 14:6?
“Porque os filhos dos matadores não matou, como está escrito no livro da Lei de Moisés, no qual o Senhor deu ordem dizendo: Não matarão os pais, por causa dos filhos, e os filhos não matarão, por causa dos pais; mas cada um será morto pelo seu pecado.”
Os rabinos interpretam a passagem de Êxodo citada acima como uma alusão clara a uma das menos conhecidas doutrinas do judaísmo – a reencarnação.
Explicando Shemót (Êxodos 20:5), o rabino Shimon Bar Yochai escreve no Zohar (Sefer Ha’Zohar, o Livro do Esplendor, o maior tratado místico do judaísmo):
“Está escrito: ‘visito a maldade dos país nos filhos até à terceira e quarta geração’. Estes são a mesma árvore, a mesma alma voltando uma, duas, três e quatro vezes, querendo dizer que encarnou e veio em quatro corpos, sendo punido pelos primeiros pecados na quarta encarnação. Porque o pai, o filho, a terceira e quarta geração (estas quatro encarnações) são um; uma alma que não fez as suas correcções nem atendeu a elas. É por isso punida pelos pecados nas primeiras encarnações. O inverso é também verdade. Uma árvore bem estabelecida pelas encarnações permanece firme, e está escrito: ‘mas mostrando clemência’...”
Sefer Ha’Zohar; Parshat Yitro 30:518
(Sefer Ha’Zohar; Parshat Yitro 30:518, a partir da tradução do aramaico original para o hebraico efectuada e comentada pelo rabino Yehudah Ashlag.)
Antes de prosseguir, convém aqui sublinhar que a doutrina da reencarnação, também conhecida como “transmigração das almas” ou Gilgul Neshamot, é uma parte integrante e bastante bem documentada do judaísmo. A doutrina é amplamente explicada no Zohar e posteriormente pelo rabino Isaac Luria no livro Shaar Ha’Gilgulim (Os Portais das Reencarnações), escrito em meados do século XVI.
Rav Avraham Brandwein, um rabino contemporâneo, reitor da Yeshiva (academia religiosa) Kol Yehuda Zvi, de Jerusalém, escreve que em Shaar Ha’Gilgulim, Isaac Luria “explica que Adão possuía uma alma universal (neshamah klalit) que incluía aspectos de toda a criação. A sua alma incluía também a unidade de todas as almas da Humanidade. É por isso que uma única acção sua pôde ter um impacto tão poderoso. Depois de ‘ter comido da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal’, a sua alma fragmentou-se em milhares e milhares de pedaços [faíscas] – fragmentos e fragmentos de fragmentos – que subsequentemente viriam a encarnar em cada ser humano que nasceu até hoje e que ainda nascerá. O objectivo destes fragmentos/almas é realizar juntos o tikkun (rectificação) que Adão deveria ter alcançado sozinho.”
Assim, a questão colocada pelo José no seu post do Guia dos Perplexos, quanto à visão judaica da vida após a morte, fica parcialmente respondida.
Quando no postEm que Acreditam os Judeus” escrevi que “no judaísmo não existem os conceitos de Céu, Inferno ou Salvação” e que, por isso mesmo, as preocupações teológicas e éticas do judaísmo se centram “unicamente nesta vida”, o sentido tinha como ponto de partida uma comparação com as doutrinas cristãs. No judaísmo não existe o conceito de “punição eterna” contido na definição cristã de Inferno. Após a morte, parte da alma é “reciclada” e volta a encarnar, de forma a efectuar as correcções (Tikkun) necessárias para que possa cumprir o seu destino final de reunificação ao Criador.
Para perceber isso é necessário compreender a visão judaica da estrutura da alma. Os tratados rabínicos do Talmude e as escrituras místicas do Zohar dividem a alma em cinco partes distintas:
1.Nefesh– o estrato mais básico, ligada à componente animal, sede dos instintos e das reacções do corpo.
2.Ruach – o espírito, ou a “alma intermédia”, ligada à compreensão moral das distinções entre o bem e o mal.
3.Neshama – a “alma alta”, ligada ao intelecto, separa a humanidade das restantes criaturas vivas; permite ao indivíduo reconhecer a existência de Deus e participar na vida eterna.
4.Chayyah – segmento da alma permanentemente consciente da força da Luz Divina.
5.Yehidah – A mais elevada parte da alma, com capacidade de alcançar unidade perfeita com o Criador.
O objectivo da evolução espiritual é ao mesmo tempo individual (porque tem de ser assumido por cada ser humano) e colectivo (no caminho da reunificação total da “alma primordial” adâmica). Uma vez alcançado o objectivo final, a evolução espiritual de toda a humanidade, escrevem ainda os rabinos do Talmude, então virá a era messiânica e a ressurreição. “O Messias filho de David [Ha’Moshiach ben David] não virá até que todas as almas no Guph cheguem ao fim”, lê-se no Talmude (Tratado Jebamoth 62a).
Sem querer entrar aqui em detalhes demasiado obscuros, convém sublinhar que os rabinos cabalistas – uma tradição que marca hoje o todo do judaísmo ortodoxo, especialmente o sefardita – encaram as almas individuais como estilhaços literais (ou “faíscas”) de um “corpo comum” existente antes da Criação. O rabino quinhentista Isaac Luria (cognominado Ari Ha’Kadosh, o “Leão Sagrado”), com a sua doutrina do Tzimtzum, é responsável por aquilo que muitos encaram como a primeira formalização conceptual da teoria do Big Bang, ao descrever pormenorizadamente, no século XVI, a contracção e explosão primordiais que teriam dado origem ao Cosmos. E aqui convém sublinhar que Isaac Luria, o mestre rabino de Safed, viveu quase 500 anos antes do belga Georges Lemaître ter efectuado, em 1927, os primeiros esboços científicos do que seria a teoria do Big Bang. Para uma interessante comparação entre as duas aconselho a leitura de “Isaac Luria and the Big Bang Theory”.
[Os pontos de intersecção entre a ciência moderna e a Cabalá judaica são um universo fascinante que, desde já, prometo voltar a abordar aqui em breve. Formulações científicas, como os modelos matemáticos de Simon Yeger, as “Dez Dimensões”, a “Superstring Theory” e a “Teoria de Tudo”, fazem agora eco de fórmulas descritas por rabinos cabalistas há mais de dois milénios. É também fascinante o facto de Isaac Newton, no século XVII, por exemplo, ter deixado mais escritos sobre Cabalá do que sobre física e matemática. Mas isso são temas para posts futuros...]
Assim, segundo Luria, as almas individuais não são mais do que pedaços de uma alma colectiva primordial indicando, na prática, que as diferenças perceptíveis existentes entre os homens (etnia, sexo, nacionalidade, idade, opiniões, etc.) não passam de meras ilusões fornecidas pelos cinco sentidos [outro conceito que prometo aprofundar mais tarde]. Numa interessante alegoria, os rabinos referem-se às almas individuais como pequenas pedras fragmentadas de uma imensa montanha – apesar de serem aparentemente únicas e individuais, nunca deixam de ser sempre pedaços da montanha. As diferenças aparentes entre os homens mascaram assim o facto do conjunto da humanidade ser, em essência, uno: somos UM – um grito cabalista ainda hoje recitado diariamente nas sinagogas do mundo.

Bibliografia consultada: “Disputation and Dialogue: Readings in the Jewish-Christian Encounter”, F.E.Talmage; “Wheels of a Soul – Reincarnation - Your Life Today and Tomorrow”, Rabino Philip Berg; “The Power of One”, Rabino Philip Berg; “Safed Spirituality: Rules of Mystical Piety, the Beginning of Wisdom”, Lawrence Fine; “Judaism in Practice – From the Middle Ages through the Early Modern Period”, Lawrence Fine; “Physician of the Soul, Healer of the Cosmos: Isaac Luria and His Kabbalistic Fellowship”, Lawrence Fine; “Everyman’s Talmud”, Rabino A. Cohen.