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domingo, janeiro 2


... Mas as Crianças, Senhor? *

O controverso papa Pio XII (na foto à esquerda), terá ordenado à Igreja Católica francesa que não devolvesse crianças judias aos seus pais ou a instituições judaicas caso estas tivessem sido baptizadas para ocultar a sua verdadeira identidade durante a ocupação nazi. A revelação é feita numa das últimas edições do diário italiano Corriere Della Sera, de Milão, num texto assinado pelo historiador Alberto Melloni, professor de história religiosa da Universidade de Bolonha e um dos maiores especialistas mundiais em história cristã.
Sob o título Pio XII a Roncalli: non restituite i bimbi ebrei (Pio XII a Roncalli: não se restituam as crianças hebreias), Melloni defende que Pio XII instruíra pessoalmente as instituições da Igreja em França a fazer tudo para negar a restituição de crianças judias confiadas à sua guarda.
O diário milanês publica ainda a carta na íntegra, datada de 20 de Outubro de 1946, enviada pelo Santo Ofício (actual Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé) ao núncio apostólico em Paris. Aqui segue a tradução do documento:
“A respeito das crianças judias que, durante a ocupação alemã, foram entregues a famílias e instituições católicas e que agora são pedidas de volta pelas instituições judaicas, a Congregação do Santo Ofício tomou as decisões que a seguir se dão conta:

1) Evitar, na medida do possível, responder por escrito às autoridades judaicas, fazendo-o apenas oralmente.
2) Nos casos que seja necessário responder, bastará dizer que a Igreja terá de fazer as suas indagações para estudar casos particulares.
3) As crianças que foram baptizadas não poderão ser entregues às instituições [judaicas] que não possam assegurar a sua educação cristã.
4) Às crianças que não têm pais e que se encontram a cargo da Igreja, não é conveniente que sejam abandonadas pela Igreja ou entregues a pessoas que sobre elas não têm direitos, uma vez que não podem decidir por elas próprias. Isto é evidentemente para as crianças que não foram baptizadas
5) Se as crianças foram entregues à guarda da Igreja pelos seus pais e se os seus pais agora as reclamam, elas podem ser devolvidas, assumindo que as mesmas crianças não tenham recebido o baptismo

Note-se que esta decisão da Congregação do Santo Ofício foi aprovada pelo Santo Padre.”
[a tradução italiana do documento original pode ser lida aqui: I piccoli giudei, se battezzati, devono ricevere uneducazione cristiana]

Com a descoberta deste documento, torna-se bem mais complexa a defesa intransigente de Pio XII a que alguns católicos se vão dedicando com zelo. O papa, cujo pontificado atravessou uma era de genocídio desabrido, não só fechou os olhos como fez por perpetuar, desta forma absolutamente repugnante, séculos de crimes do catolicismo contra os judeus.
A um historiador é impossível não comparar esta recusa do Vaticano em entregar as crianças judias, sob o pretexto da necessidade de lhes dar uma educação cristã, com incidentes semelhantes ocorridos no passado. Na península Ibérica, séculos antes da formação política de Portugal, os reis visigóticos foram os primeiros a usar os mesmos métodos. Depois de várias leis antisemitas decretadas após a conversão ao catolicismo do rei Recaredo, em 586, o rei Sisebuto ordenou a conversão forçada de todos os judeus do seu reino. Para assegurar que os descendentes destes judeus convertidos seriam cristãos verdadeiros, ordenou que todas as crianças judias com menos de 12 anos fossem retiradas aos seus pais, confiando-as à guarda de famílias católicas. O sequestro de crianças judias como política de estado prosseguiria de forma intermitente até ao reinado de Roderico, o “último dos visigodos”. Mas a medida não surtiria os efeitos desejados, em parte por causa da afortunada desorganização que caracterizou os reinos visigóticos na península Ibérica. A prova disso foi dada com o elevado número de judeus existentes por altura da invasão árabe de 711.
No final do século XV, D. Manuel I repetiria o gesto, raptando mais de 2000 crianças judias portuguesas às suas famílias, enviando-as em seguida para “povoar e embranquecer a raça” (sic.) da ilha de São Tomé. O historiador britânico Cecil Roth conta a propósito: “Um grande número de crianças foi brutalmente retirada dos braços dos seus pais, levadas para povoar a insalubre ilha de São Tomé, onde a vasta maioria acabaria por morrer.” Um ano após a deportação, apenas 600 crianças sobreviviam. [Ver também The Jews of Africa - Sao Tome and Principe e Judaic Research in Balearic Islands and Sao Tome]
Também aqui a medida extrema acabaria por falhar e muitas das crianças raptadas continuaram a praticar a religião dos seus pais. Disto mesmo dão conta várias cartas assinadas por D. Pedro da Cunha Lobo, nomeado bispo de São Tomé em 1616. Um judeu português, Samuel Usque, escreveria sobre estas crianças na sua obra maior, “Consolação às Tribulações de Israel” (publicada em Ferrara em 1553).
A descoberta agora deste novo documento do pontificado de Pio XII, datado de 1946, trás à tona memórias de um passado que muitos querem fazer por esquecer. Mas dentro destas maquinações do Santo Oficio, tão ao jeito das suas obras do passado, reside uma suprema ironia: uma dessas crianças, Aaron Jean-Marie Lustiger, com a mãe morta em Auschwitz, e baptizado aos 14 anos, é agora um dos Príncipes da Igreja, arcebispo de Paris, apontado como um dos prováveis sucessores de João Paulo II na cadeira de São Pedro.
O cardeal Lustiger (na foto à direita) continua a considerar-se profundamente judeu -- uma afinidade, afinal, que partilha com o messias cristão -- chegando a afirmar: “Nasci judeu e assim continuo, mesmo que tal seja inaceitável para muitos. Para mim, a vocação de Israel é trazer a luz aos goyim **. Esta é a minha esperança e acredito que a cristandade é a forma de alcançar este propósito.”
As suas palavras tendem a ser habitualmente polémicas, tanto junto dos católicos como dos judeus. Mas à luz da Lei Judaica (Halakhá), Aaron Lustiger continua a ser um judeu, para todos os efeitos, apesar da sua apostasia.
Em relação às acusações normalmente proferidas contra Pio XII – colaboracionismo com a Alemanha nazi e indiferença perante o genocídio e sofrimento continuado de dezenas de milhões de pessoas na Europa – ver uma excelente recolha de documentação dos dois lados da discussão elaborada pela Jewish Virtual Library: Pope Pius XII Table of Contents

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* do poema "Balada da Neve", de Augusto Gil
** a palavra hebraica goy,
גוי (ou goyim no plural), traduzida habitualmente como gentio quer dizer literalmente estrangeiro