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sexta-feira, fevereiro 4


A Campanha Eleitoral Vista a 9133 Km de Distância (II)
“Jogo Sujo”, ou a Má Influência Americana



Não me proponho fazer uma análise à campanha – há muita gente a fazê-lo diariamente na blogosfera muito melhor do que eu –, ou sequer ao debate de ontem à noite entre Santana Lopes e José Sócrates, mas como jornalista a viver há 10 anos nos EUA e a acompanhar diariamente a realidade política americana, admito que fiquei bastante surpreendido com a crescente americanização da política portuguesa. O mimetismo é inescapável.
Não estou aqui a falar do formato civilizado – a expressão não é minha – do debate, mas da forma como a campanha propriamente dita está a ser gerida. Os rumores e boatos, os ataques pessoais feitos por interposta pessoa, enfim toda a “campanha negativa”, são marcas inequívocas de uma importação do que de pior se faz na política americana. Exagero? Acredito que não.
O próprio Pedro Santana Lopes admitiu isso mesmo ontem à noite durante o debate quando confrontado directamente por Sócrates em relação ao célebre cartaz da JSD: “As campanhas em que se fala dos adversários são hábito em todas as democracias, nomeadamente, na americana”, respondeu o ainda primeiro-ministro. Mas esta admissão é apenas a ponta do véu. Sócrates tem razão num ponto – nunca se assistira em Portugal a uma campanha de ataque sistemático ao adversário, onde mais de metade do esforço de propaganda do partido do governo faz referência directa às posições da oposição em vez de veicular as suas próprias ideias.
É certo que as americanices não são novidade nas campanhas políticas portuguesas. Dos chapéus de palha da candidatura presidencial de Freitas do Amaral, em 1986, aos aventais de Paulo Portas, há muito que os políticos portugueses se inspiravam nas campanhas eleitorais americanas. A novidade é a importação das tácticas da “campanha suja”.
Pode ser apenas por estar a acompanhar esta campanha eleitoral com óculos americanos, mas acredito que Santana Lopes – e os seus assessores – está a copiar ao milímetro as tácticas usadas pelo actual presidente americano em 2000 e 2004, acreditando que foram elas que deram a vitória a George W. Bush – ele próprio um político algo impopular, acusado de incompetência e com uma imagem pública não muito favorável. Santana acredita que pode fazer em Portugal o decalque de uma campanha eleitoral americana. Vamos aos exemplos:

Boatos e Rumores – Em 2000, depois do senador John McCain ter vencido folgadamente as primárias republicanas em New Hampshire, a “máquina venenosa” montada por Karl Rove – o “arquitecto” das campanhas de Bush – avançou em força para a Carolina do Sul, onde as sondagens apontavam para mais uma derrota quase certa. Anúncios televisivos da candidatura de Bush atacavam McCain directamente. Mas isso não chegava. De uma forma consistente e misteriosa, começaram a circular entre o eleitorado republicano fotocópias de uma fotografia de família de McCain, onde o senador aparecia abraçado à mulher e ao seu filho adoptivo vietnamita. A insinuação era clara: num estado sulista onde a guerra civil americana ainda é referida como “a guerra de agressão nortenha”, onde o racismo ainda marca a vida quotidiana, a imagem de McCain abraçado a um adolescente de pele escura valia mais que mil palavras (ver Slate - Instant Analysis by Jacob Weisberg e BBC - Republican's negative campaign row).
Convém dizer que John McCain é um dos mais emblemáticos políticos americanos – um republicano moderado que sempre se recusou curvar à chamada “direita religiosa” e que assina propostas legislativas ao lado dos democratas.
Mas Rove não se deu por satisfeito. Paralelamente à fotocópia da foto de família, surgiu um rumor segundo o qual John McCain teria problemas de estabilidade mental e emocional como consequência de ter passado cinco anos da sua vida como prisioneiro de guerra no Vietname. Ao mesmo tempo, alistou a “direita religiosa” para atacar também John McCain – ver Reverend Pat Robertson attacks McCain.
Os golpes contra McCain resultariam e George W. Bush ganhou as primárias na Carolina do Sul, uma vitória que abriria caminho para a disputa da Casa Branca (ver For 'Gutter Politics,' Look to the Bush Camp).
É verdade que sempre existiram boatos e rumores na política eleitoral portuguesa. Mas é também verdade que estes nunca tinham sido utilizados de forma tão deliberada e sistemática pela máquina de um partido.

Ataques Indirectos – O célebre cartaz da JSD contra José Sócrates é o anúncio dos “swift boat veterans” de Pedro Santana Lopes. A sua responsabilidade é atribuída à JSD, ilibando o ainda primeiro-ministro de qualquer tipo de responsabilidades no ataque pessoal e nas insinuações, da mesma forma que George W. Bush lavou as mãos do anúncio televisivo que questionava o serviço militar de John Kerry no Vietname. Curiosamente, o republicano John McCain, que em 2000 sofrera na pele os efeitos da “máquina venenosa” de Bush, veio de imediato a público classificar os ataques como deploráveis e desonestos, tal como alguns destacados militantes do PSD criticam agora a estratégia de ataque sem precedentes claramente escolhida por Santana Lopes. Mas, tal como McCain o fez em 2004, também eles ainda assim vão votar no candidato que desprezam.
A vantagem política dos rumores, boatos e ataques indirectos é o facto de ser impossível combatê-los de forma eficaz. Responder a insinuações nem sempre é uma manobra inteligente. E, por vezes, não contestar ainda é pior (Kerry esperou três semanas até responder às acusações dos swift boat vets, numa estratégia que tentava ignorar os insultos mas que acabaria por lhe sair pela culatra dado o impacto que o anúncio teve junto do eleitorado - ver JS Online: Swift boat ad has outsize impact).

Há mais exemplos de estratégias simétricas entre a campanha de Santana Lopes e a arquitectura desenhada por Karl Rove para as candidaturas de George W. Bush – a insistência em “issue politics”, ou política de “causas”, é outro, mas ficará para um post futuro.
Mas outros paralelos existem. Para muitos, tal como John Kerry face a George W. Bush, José Sócrates é também o não-Santana. Tal como Kerry, Sócrates é monocórdico, desprovido de carisma, quase robótico (usando uma expressão de Luís Osório). Pedro Santana Lopes, tal como Bush, transpira uma imagem de incompetência e não se importa de jogar sujo, de chafurdar na lama, se pensar que com isso poderá continuar a seguir em frente.
Mas, depois de tudo isto, Pedro Santana Lopes e os assessores que o aconselham a enveredar pela “campanha suja” decalcada da campanha eleitoral americana esquecem-se de um pequeno pormenor: Portugal não é os Estados Unidos e a realidade – e as tradições – políticas e sociais dos dois países tornam a transposição pura e simples de estratégias simplesmente risível. Para mais, a juntar às diferenças, George W. Bush teve Karl Rove e um partido unido em peso atrás de si. Pedro Santana Lopes não tem ninguém equiparável a Rove e o PSD, por sua causa, enfrenta uma profunda crise de identidade.

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“Campanhas sujas” e a História Americana

As campanhas eleitorais americanas foram sempre marcadas por intensos ataques pessoais. Segundo os historiadores, a mais “suja” campanha de sempre decorreu em 1828, entre Andrew Jackson e John Quincy Adams – que, em 1796, chegou a ser ministro plenipotenciário dos Estados Unidos em Portugal. A candidatura de Jackson chamava a Adams “O Chulo”, enquanto um jornal favorável a Adams acusava a mãe de Jackson de ser “uma vulgar prostituta trazida pelos soldados ingleses”. Mas as calúnias não se ficaram por aqui: adúltero, dono de escravos, bêbado, analfabeto, briguento e ateu foram alguns dos insultos trocados entre dois candidatos. E quando deixaram de ter nomes para chamar um ao outro, Jackson e Quincy Adams voltaram-se para as mulheres do adversário. Estava dado o mote para um futuro promissor que atravessa agora o Atlântico com quase dois séculos de atraso.