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quarta-feira, fevereiro 2


Henrique Canto e Castro (1930-2005)


Nunca tive jeito para obituários. Cada vez que me sinto obrigado a escrever sobre a morte de alguém que me marcou, recordo-me de uma frase escrita por Fernando Assis Pacheco, a propósito do aniversário da morte de Zeca Afonso, no Jornal de Letras em 1992: “(...) não tendo nós o dom da ressurreição, caímos não obstante num discurso tão próximo do evangélico que soa a falso.” Mas com Canto e Castro tenho a obrigação de correr esse risco. Ele foi a primeira personalidade pública que entrevistei.
Lembro-me de estar extraordinariamente nervoso. No agora longínquo Verão de 1986, sentado durante duas horas num minúsculo estúdio de rádio, Canto e Castro fez-me esquecer por completo que outros ouvidos ouviam a conversa. Era um homem que tinha muitas histórias para contar.
Conhecera-o anos antes, por intermédio de Romeu Correia, que por sua vez me aturava por ser doente da minha mãe. Eu tinha uns 12 anos, e confesso que demorei algum tempo até perceber que reconhecia a voz de Canto e Castro porque cresci a ouvi-la transplantada em desenhos animados, da “Abelha Maia” ao “Marco”.
Anos antes, ele estava também em palco na primeira vez que me lembro de ir ao teatro – levaram-me a ver “Tempos Difíceis”, uma peça escrita por Romeu Correia, na Companhia de Teatro de Almada, que durante anos, antes do Teatro Nacional, fora a casa de Canto e Castro.
Com Luís de Sttau Monteiro e Romeu Correia, ele fez parte de um notável grupo de velhos intelectuais marxistas que, com conversas e livros, marcaram profundamente a minha adolescência na Rua da Judiaria, em Almada. Canto e Castro foi um dos melhores actores da sua geração, um homem grande e intensamente generoso. Por natureza uma criatura do palco, fez também muita televisão e cinema, trabalhando com todos os “mestres”, de Manoel de Oliveira a Wim Wenders. No meio disto, conseguiu sempre ser suficientemente despretensioso para se sentar a tomar café, no Central ou no Tic-Tac (na Rua Capitão Leitão, frente à decrépita sede do PC de Almada), e ter paciência para aturar um miúdo que gostava de ouvir histórias e de saber o que liam os mais velhos.
Canto e Castro morreu ontem de madrugada. Deixa muitas saudades.