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domingo, janeiro 9


RTP na Palestina:
Os Erros de Paulo Dentinho


Enviado especial da Radio e Televisão de Portugal (RTP) às eleições palestinianas, Paulo Dentinho tem a tendência de repetir os mesmos erros de forma sistemática. Em todas as suas reportagens que vi (as dos dois últimos dias e as do funeral de Arafat, em Novembro), o jornalista da RTP raramente – nunca de forma directa – se referiu aos soldados das Forças de Defesa de Israel (FDI) como “soldados israelitas”, optando invariavelmente por classificá-los como “soldados judaicos”. Dando de barato o erro gramatical da última expressão – o correcto aqui seria “soldados judeus” –, a ininterrupta insistência de Dentinho vai além do erro simples: é uma profunda deturpação recheada de segundos sentidos óbvios.
Antes de mais, convém esclarecer que as Forças Armadas de Israel não são compostas unicamente por judeus. Muitos dos seus soldados – e oficiais – pertencem às várias minorias étnicas e religiosas do país: são também muçulmanos, beduínos, druzos e cristãos, ou simplesmente emigrantes naturalizados chamados ao serviço militar (cidadão israelita, o meu sogro, por exemplo, fez a tropa, entre as décadas de 70 e 80, no mesmo batalhão com um soldado japonês não-judeu que simplesmente emigrara para Israel e se naturalizara). Uma simples busca no Google seria suficiente para corrigir esta deturpação, segundo a qual a expressão “soldado judaico” seria de alguma forma equivalente a “soldado israelita”. Aqui vão os links que provam não ser bem assim:
Haaretz News - Druze soldiers are pampered, their civilians hampered / דרוזים / Israel - The Druze "Sword Battalion" / The Druze in Israel / The Druze / The Bedouin in Israel / Five Bedouin Desert Reconnaissance Battalion Soldiers Killed / For Arab soldiers in Israeli army, fatal attack shows risks / FiftyCrows - Social Change Photography – Israel's Bedouin
Se for involuntário, o erro repetido de Dentinho deveria ser corrigido prontamente, afinal ele é um jornalista de um canal estatal de televisão que garante primar pelo rigor. Se não for involuntário, as ilações a tirar são óbvias e este erro deve ser catalogado entre os muitos exemplos de jornalismo irresponsável que teima em não saber (ou não querer) distinguir “judeus” e “Israel”. É este tipo de jornalismo irresponsável, muitas vezes simplesmente desleixado e preguiçoso, admito, que vai ateando na Europa as chamas do antisemitismo.
No caso concreto do Telejornal de ontem à noite (sábado), em duas intervenções Paulo Dentinho usou as expressões “soldados judaicos” ou “exército judaico” cinco vezes no espaço de pouco mais de 1 minuto e meio (ver Arquivos da RTP, formato .rm), contra 4 ocorrências semelhantes no Telejornal de domingo. A significação correcta, “soldado israelita”, foi apenas mencionada uma vez, e aqui apenas na tradução directa de uma entrevista a Mahmud Chanti, um fotojornalista palestiniano.
Numa passagem da primeira reportagem, Dentinho chegou a falar do “ponto de vista judaico” (sic.), citando as palavras de um porta-voz do governo israelita, uma classificação que apenas faria sentido caso o responsável israelita tivesse falado sobre questões religiosas relativas ao judaísmo. De uma vez por todas: as palavras “judaico” e “israelita” não são sinónimos equivalentes e cambiáveis!
O erro pode ser comprovado num rápido teste: falando de “livros judaicos” nunca se poderia incluir, por exemplo, uma tradução hebraica ou yiddish da Metamorfose, de Kafka, isto apesar de Kafka ser judeu.
Para alguns, porém, tudo isto não passará de um preciosismo da minha parte. Poderá até parecer irrelevante. Mas só mesmo quem desconhece (ou recusa admitir) as fortes influências da linguística na formação de mentalidades e fenómenos sociológicos poderá pensar assim.
Já escrevi, aqui na Judiaria e noutros lados, sobre o corrente abuso, com sentido depreciativo, de palavras como cabala, judiar ou judiaria. Debati também a necessidade de extirpar o jornalismo irresponsável que vai moldando em Portugal as percepções do conflito israelo-palestiniano (ver Irresponsabilidades, O Diário Digital Errou e Vital Moreira Errou).
Mais uma vez, gostaria de reforçar a minha profunda convicção que um debate honesto sobre o conflito israelo-palestiniano – whatever that means – só pode acontecer quando tiver por base uma cobertura jornalística responsável. Por agora fico-me pela forma, mas pretendo escrever aqui brevemente sobre o conteúdo igualmente questionável dos trabalhos de Paulo Dentinho na Palestina.

:: ADENDA :: A única vez em que as palavras “judeu” e “Israel” são sinónimos perfeitos é quando estas são utilizadas num contexto de abordagem religiosa. Há mais de 3 milénios que os judeus são referidos religiosamente como “filhos de Israel” ou “Israelitas”. É comum também as comunidades judaicas (religiosas) espalhadas pelo mundo se intitularem “comunidades israelitas”. No entanto, parece-me necessário sublinhar uma vez mais que aqui o contexto é sempre religioso e nunca político.

PS – No mesmo Telejornal de sábado à noite referido acima, Judite de Sousa abriu com referências ao maremoto do sudoeste asiático, comentando imagens captadas “num ‘rizorte’ de luxo” (sic.). Uma referência óbvia à palavra inglesa “resort”, que em português se traduz habitualmente como “estância de férias”. Esta foi a primeira ocorrência que ouvi de “emigrantês” típico vinda de uma pessoa que nunca viveu fora de Portugal. Mais um risquinho para as contas dos que continuam a anotar os pontapés na língua que o “tsunami” arrastou.
[Para confirmar basta clicar aqui e esperar uns 45 segundos... Judite de Sousa repete a palavra “rizorte” meio minuto depois.]


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Resposta de Paulo Dentinho (14/01/2005):

Tem razão, admito que as Forças De Defesa de Israel não são apenas constituídas por judeus e que há também árabes, beduínos, druzos e outros, mas trata-se de um exército destinado a salvaguardar a existência de um estado onde a maioria da população é judaica, condição essencial para a preservação desse estado, no futuro. Se assim não fosse, Israel teria procurado anexar a Cisjordânia, ou se quisermos, a Judeia, a Samaria e a Faixa de Gaza. Não o fez por inúmeras questões, sobretudo porque teria de conceder a nacionalidade israelita aos residentes nessas áreas e, nesse caso, a maioria judaica da população estaria comprometida num prazo não muito longínquo. As regras democráticas do estado de Israel levariam para o parlamento muitos mais deputados árabes. Em de "The Iron Wall", por exemplo, um olhar sobre a história do conflito israelo-árabe, Avi Shlaim nos dá conta dessas preocupações na mente dos vencedores da guerra de 1967, da qual resultou a conquista daquelas terras à Jordânia e ao Egipto. O processo para anexar Jerusalém Oriental corrobora o que acabo de escrever, pois Israel viu-se na obrigação de conceder direito de cidadania a mais de cem mil residentes palestinianos. Convém ainda recordar que os principais motivos que estiveram na base do movimento sionista, há dois séculos, o antisemitismo e a condição de minoria nacional nos países da diáspora, se traduziu no desejo de uma pátria judaica, estado-nação onde os judeus fossem sempre maioritários em relação a outros povos residentes nesse mesmo território. Por fim, deixo-lhe a morada de um site judaico onde as Forças de Defesa de Israel são referidas como... exército judaico: Ahavat Israel.
Agradeço as suas observações, e não estou a ironizar. Gosto de aprender, sei reconheçer os meus erros. Felizmente não faço parte daqueles que acham que têm todo o saber do mundo, ou dos que, sem opinião, reproduzem permanentemente e de forma acrítica o pensamento alheio. Mas também é verdade que o seu comentário lançou suspeitas de parcialidade sobre o meu trabalho, o que eu lamento, pois procuro sempre dar várias perspectivas sobre a realidade existente naquela zona do mundo.

Cumprimentos.

Paulo Dentinho

Resposta a Paulo Dentinho (14/01/2005):

Caro Paulo,

Antes de mais, deixe-me agradecer-lhe com toda a sinceridade o facto de se ter dado a trabalho de responder às minhas críticas. Acredite que aprecio enormemente este seu gesto.
Os seus argumentos em relação à natureza judaica do estado de Israel estão absolutamente correctos. Não os contesto. Mas Paulo, não é isso que está aqui em causa. Não se trata de uma questão de demografia ou da defesa de demografias, mas tão só de alusões a um exército nacional (ou a um Estado) que, tal como acontece com todos os exércitos nacionais do mundo (e com todos os Estados), deve ser referido jornalisticamente pela sua nacionalidade e não pelas suas condicionantes demográficas, étnicas ou religiosas.
Definir o que significa ‘ser judeu’ ou ‘judaico’, em sentido lato, é uma tarefa deveras complicada porque, para além da religião, implica também conceitos de cultura, etnia e nacionalidade. A definição de ‘israelita’, por outro lado, é suficientemente simples: um israelita é um cidadão de Israel.
Honestamente, compreendo que possa existir uma tendência para confundir as duas expressões, apesar de considerar absolutamente necessário que se reconheçam as diferenças entre uma e outra coisa, especialmente quando é esse o objecto do nosso trabalho. Acredite que não é um simples preciosismo da minha parte.
Quando o Paulo, nas suas reportagens, fala em ‘exército judaico’ a carga da expressão vai além do simples sinónimo eventual de ‘exército israelita’ – ela transforma-se em “o exército dos judeus contra os palestinianos” o que de imediato arrasta um simbolismo no qual todos os judeus são acoplados às políticas de Israel e às acções do exército israelita, uma implicação que não existe normalmente quando se fala em termos estritos de nacionalidade e cidadania. A mesma leitura estaria implícita caso o Paulo alguma vez tivesse referido as autoridades palestinianas como ‘autoridades muçulmanas’ ou ‘islâmicas’.
Quando se fala em ‘exército judaico’ incorre-se ainda, mesmo que seja de forma inconsciente, numa “deslegitimização” do Estado de Israel, reduzindo o conflito a meros contornos étnicos, religiosos, ou se quiser, demográficos. Passa a ser mais um “choque de civilizações” onde é questionada, de forma quase subliminar, a legitimidade de Israel existir.
Desta forma, e mesmo sem o querer, o Paulo estará a contribuir também para propagar a visão segundo a qual todos os judeus incorrem em responsabilidades pelas políticas e acções do estado de Israel. Afinal, que outras razões senão a cobertura mediática levam uma criança judia de 13 ou 14 anos – que nunca sequer pôs os pés em Israel – a ser insultada e cuspida nas ruas de Paris e que lhe gritem aos ouvidos coisas como “judeus fora da Palestina”? Espero que compreenda aqui as minhas profundas reservas, não só enquanto judeu, mas também como forte opositor das políticas do Likud de Ariel Sharon – partido com o qual não tenho o menor ponto de contacto.
Honestamente, acredito que não terá sido esta a sua intenção. Mas Paulo, enquanto jornalistas, ambos sabemos que a leitura que é feita das nossas palavras nem sempre corresponde às nossas intenções primárias.
Em suma, a minha crítica tinha exclusivamente a ver com o contexto da sua utilização da expressão ‘soldados/exército judaico’ e as suas eventuais extrapolações. Não nos podemos alhear do facto do nosso trabalho contribuir sempre, quer queiramos quer não, para a formação de opiniões ou para a perpetuação de estereótipos. E as palavras que escolhemos são de uma importância extrema, especialmente em televisão e na cobertura de acontecimentos tão polarizadores quanto o conflito israelo-palestiniano.
Deixe-me dar mais um exemplo. Na sua reportagem transmitida no Telejornal de domingo, o Paulo referiu-se ainda a prisioneiros palestinianos detidos em “prisões judaicas”. Agora, peço-lhe que se distancie um pouco e analise esta expressão de uma forma fria desapaixonada. Que imagens se conjuram quando falamos em “prisões católicas” ou “prisões islâmicas”? Está a ver onde quero chegar?
Já agora, o site que me indica, onde as Forças de Defesa de Israel são referidos como exército judaico, intitulado “Ahavat Israel” (que literalmente quer dizer: “amor ao povo judeu”), é criado e mantido por uma organização religiosa ultraconservadora cujos critérios de objectividade serão por certo bem diferentes dos de um órgão de informação. O Paulo concordará comigo que será fácil, por exemplo, encontrar um site equivalente nos EUA onde o exército americano seja referido como “exército cristão” (estou a lembrar-me de uma crónica de Ann Coulter, uma colunista de extrema-direita, publicada logo após os atentados de 11 de Setembro de 2001). Mais uma vez, é tudo uma questão de contexto e enquadramento.
Podemos até eventualmente ter opiniões divergentes em relação ao conflito, mas creio que no fundo ambos desejamos que o seu resultado final seja uma paz duradoura, com dois estados – livres, democráticos, economicamente viáveis – a coexistirem lado a lado.

Com os melhores cumprimentos e um agradecimento sincero pela sua resposta,

Nuno Guerreiro